Mulheres marcadas pela pele
10/03/2020 17:42
Paula Veiga

Gerações de tatuadoras traçam experiências no ramo dos desenhos permanentes

Lia Nunes tem 25 anos de experiência como tatuadora. Foto: Lia Nunes

Na década de 1990, mulheres como Lia Nunes Avelar descobriram que a arte de tatuar não era algo exclusivo das mãos masculinas e decidiram desenhar um caminho diferente. Hoje, no Brasil e no mundo há estúdios formados por equipes femininas, opção para ajudar clientes que não se sentem à vontade com o contato físico de homens ou para aqueles que preferem um traço criado por mulheres. Com idades distintas, as profissionais deste ramo relatam se há características distintas do trabalho feito por tatuadores e do que é realizado por tatuadoras. 

Aos 51 anos de vida e 25 de experiência, Lia percebe que as mulheres preferem tatuar parte íntimas do corpo com artistas do mesmo gênero. Ana Luiza Bezerra, de 19 anos, tem cinco tatuagens espalhadas pelo corpo, como uma jaguatirica estampada no braço direito, e todas foram desenhadas por mulheres. A estudante do 4º período do curso de Artes & Design relata que não se sente confortável em ter o corpo tocado por um homem desconhecido. Para clientes como Ana, os estúdios com predominância do sexo feminino se tornam uma opção.  

Das ‘rugas’ à nova geração

Tatuadora e mãe de dois filhos, Lia cresceu no interior de Minas Gerais, em uma família tradicional de fazendeiros. Aos 14 anos, a artista foi para a cidade grande onde teve o primeiro contato com a arte e com o que chama de “liberdade de expressão”. Lia cursou Artes Visuais e Relações Internacionais na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), também foi enfermeira para sustentar a família. Após o ex-presidente Collor confiscar as cadernetas de poupança da população brasileira, se mudou para Bahia e encontrou a profissão praticada até hoje.

- Há 25 anos, me tornei a segunda mulher tatuadora no Brasil, e isso foi muito difícil. Na época, a única outra tatuadora era a Medusa, com estúdios em São Paulo e em Brasília. Antigamente, não se tinha informação e tudo era de difícil acesso, o instinto era necessário. Hoje é legal dizer que sou artista, com as rugas no rosto adquirimos respeito e admiração. 

Lia trabalha com diferentes estilos de tatuagem. Foto: Lia Nunes

Lia mora no Canadá seis meses do ano e, apesar de possuir o próprio estúdio, trabalha em outras casas de tatuagem. Conta que nunca teve dificuldade de encontrar emprego no ramo e que alguns estúdios até preferem mulheres porque consideram essas profissionais mais organizadas e limpas. Com uma carga de experiência vasta, ela considera que, apesar de cada profissional ter um perfil, o trabalho das mulheres é mais delicado. Lia, no entanto, ressalta que isso não é, necessariamente, uma regra. 

- Eu sou mulher e faço trabalhos super delicados, com linhas finas, mas também posso fazer uma arte super agressiva, com linhas grossas. Isso vai muito do profissional, da qualidade do trabalho e do estilo que se dispõe a fazer.

Já Lethicia Corrêa, de 21 anos, é tatuadora de uma geração mais nova e acredita que não existem diferenças entre os traços de mulheres e homens. Nas palavras da artista, as criações não são limitadas ao gênero, estilos como o Fineline - linhas finas e precisas que não contam com preenchimento - podem ser desenhados por qualquer tatuador. Lethicia adotou dois estilos, o Old School - desenhos grandes, com contornos e traços grossos em cor preta, e uma paleta de cores normalmente com amarelo, verde, azul e vermelho -, e também o Blackwork - trabalho em preto, como sugere o nome, e um dos mais antigos. 

O traçado como arte

Moradora de Campo Grande, Zona Oeste, Lethicia se apaixonou pela profissão enquanto estudava para o vestibular, após o convite do atual chefe, que a chamou para aprender o ofício de desenhar no corpo. Hoje, ela cursa Belas Artes na UFRRJ, é tatuadora freelance e trabalha na República da Arte, no Calçadão de Campo Grande, com aulas de desenho para crianças. Ela lembra que já foi discriminada por algumas pessoas, que não quiseram tatuar com a estudante pelo fato de ela ser mulher. Por outro lado, lembra, criou relações de fidelidade com clientes que não tatuam com outros artistas por terem se tornado fãs do trabalho dela. 

- Em toda profissão com a concepção popular de ser mais voltada para o público masculino existe, sim, uma dificuldade na hora de as mulheres conseguirem emprego. Quando comecei a tatuar há alguns anos, eu fazia muitos trabalhos com o meu chefe, como fechamento de braço. Eu sentia as pessoas com o pé atrás por eu estar tatuando com ele. Hoje, talvez por já ter fidelizado um público, não sinto isso, mas no início era evidente essa preferência. 

Trabalho realizado por Lethicia em Blackwork. Foto: Lethicia Corrêa

Outra jovem a seguir no ramo das tattoos é Lina Moschkovich, de 20 anos. Aluna de Belas Artes, ela trabalha no Catarse Estúdio, na Tijuca, cuja equipe é composta predominantemente por mulheres. Com gosto pelos desenhos que enfeitam corpos desde os 13 anos, a artista começou a tatuar em 2019 e tem preferência pelo estilo Old School e também por figuras animadas. Ela enxerga a tatuagem não como um mercado, mas como uma arte, pela possibilidade de poder fazer em qualquer lugar e do jeito que preferir. Apesar da carreira recente, Lina já sentiu na pele o emprego ser determinado pelo gênero.

- Fui aprendiz de um homem, ele nunca foi extremamente machista comigo até a hora de me demitir porque eu era mulher. Até lá, todos os estúdios que frequentei com ele eram praticamente só os homens que mandavam.

Tatuadoras como Lia Nunes são exemplos para as recém-chegadas de que a mulher tem a possibilidade de crescer na profissão e, com o próprio estúdio, ela mostra que não somente homens podem obter sucesso nesta carreira. Os primeiros passos de Lia na década de 1990 influenciaram os filhos a seguirem os passos da mãe. Tantos anos brincando no estúdio de Lia durante a infância, levaram a filha dela para trabalhar com tattoos na Alemanha, e o filho está no Canadá, no estúdio Bad Buddha Tattoos & Piercings. Em uma profissão em que sofreu preconceito, cantadas e assédio, Lia afirma que, independente do que se faz na vida, é importante saber se posicionar diante das situações.

- Já passei por muito preconceito por ser mulher. Mas você precisa tomar uma postura e impor o respeito. Eu sempre tive uma relação muito legal, amizades que ficam para sempre. Eu tenho muita gratidão por isso, porque eu consigo realizar meu trabalho e manter as amizades que eu conquistei.

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