O legado da Missão Artística Francesa, que desembarcou no Brasil há dois séculos
16/05/2016 16:02
Camila de Araujo / Ilustração de Diogo Maduell sobre gravuras de Debret

Restauração dos Bourbon contribuiu para que artistas se estabelecessem no Rio de Janeiro.

Aquarelas que compõem ‘Viagem Pitoresca e histórica ao Brasil’,

No campus da PUC-Rio, na Gávea, o Solar Grandjean de Montigny é um dos legados da comitiva que posteriormente ficou conhecida como Missão Artística Francesa. Composta por cerca de 40 artistas franceses, a expedição tinha como objetivo oficializar o ensino das Artes na nova capital do Reino de Portugal e Algarves, a exemplo das metrópoles europeias. Entre os passageiros do veleiro norte-americano Calphe, estavam o arquiteto Grandjean de Montigny e os pintores Jean-Baptiste Debret e Nicolas-Antoine Taunay. Sob a tutela de D. João VI, o grupo organizado pelo ex-secretário do Instituto da França Joaquim Lebreton aportou no Brasil em 26 de março de 1816.

A viagem dos artistas coincidiu com a Restauração Monárquica na França que destituiu Napoleão Bonaparte. Protegidos pelo estadista, os neoclássicos foram perseguidos e acabaram relegados ao ostracismo em seu país. No Brasil, foram os representantes do neoclassicismo – movimento que buscava reimprimir a estética greco-romana. Adotado como estilo da Corte Francesa, exemplo de luxo e suntuosidade, o neoclássico foi aceito pelas demais como o oficial para registrar os feitos da nobreza. Ideário que acompanhou a transferência da realeza de Portugal, retratado por Debret em telas como Aclamação de D. João VI, Coroação de D. Pedro I e Desembarque da Princesa Leopoldina.

Com o intuito de conferir arte, cultura e refinamento à nova capital, D. João VI aceitou a sugestão do Conde da Barca, Antônio de Araújo e Azevedo, de fundar um instituto para o ensino de artes e ofício. Por ordem do rei, o Marquês de Marialva chegou a Joaquim Lebreton, líder da iniciativa em Paris. Embora haja versões que apontam a decisão de migrar para os trópicos como uma articulação dos próprios artistas franceses.

Segundo a professora Tatiana Siciliano, do Departamento de Comunicação Social, as duas hipóteses estão de acordo na implantação da Colônia Lebreton.

– Não existe nenhum documento que comprove o caráter oficial da Missão. Mas que houve um interesse dos dois lados é possível inferir, já que os artistas estavam desempregados e a Corte precisava de um certo glamour – afirma Tatiana, mestre em História, Política e Bens Culturais e doutora em Antropologia.

Com altos índices de criminalidade, ruas estreitas, sujas e ocupadas por escravos, o Brasil que os estrangeiros encontraram estava distante das grandes capitais como Paris. O historiador e imortal da Academia Brasileira de Letras Alberto da Costa e Silva comenta que os missionários franceses encontraram uma cidade descuidada, porém bela.

– O Rio de Janeiro era uma cidade feia, pequena e poeirenta, mas com uma paisagem linda. Os artistas franceses encontraram casas mal pintadas, ausência de passeios públicos e de grandes praças arborizadas – diz Costa e Silva.

Para ele, as grandes contribuições do grupo chefiado por Lebreton foram a criação de uma estética mais apurada de arte e a profissionalização.

– O maior legado da Missão Artística foi ter instituído no Brasil um conceito mais erudito de arte. Eles trouxeram o que se entendia no Ocidente nesse campo para o Brasil. Até então, não havia a ideia do artista ou do arquiteto, as pessoas conheciam o artesão, mas os franceses apresentaram a ideia de um ensino artístico oficial – afirma o historiador.

O professor João Masao Kamita, do Departamento de História, observa que, antes da chegada da Missão Artística, as construções eram muito simplórias, sem a monumentalidade de capitais do Velho Mundo.

– Havia um padrão de sobrados coloniais de ruas contínuas de dois a três pavimentos, no máximo. Construções associadas ao signo do atraso. De resto, chácaras, sítios e áreas alagadiças. Não havia uma arquitetura civil nobre, palácios. Por essa razão, era necessário atribuir à cidade uma transformação que estivesse em sintonia com o novo status da capital do Reino – analisa Kamita.

Registros do Rio de Janeiro foram estampados pelo pintor de costumes Jean-Baptiste Debret que, além de retratista oficial da Corte, captou cenas do cotidiano brasileiro, fauna, flora e personagens do mundo que despontava nos trópicos. Para Tatiana, ele foi responsável por mostrar a tensão social e a perversidade da escravidão, apresentados no livro Viagem Pitoresca e História ao Brasil, publicado em 1831, quando regressou à França.


– Debret é um cronista do Rio de Janeiro. Ele mostra quem era o povo que vivia e transitava no espaço urbano. Em seu livro, ele descreve os costumes e ilustra com aquarelas a tensão social e a perversidade escravocrata, o que nas obras de Debret são candentes. Ele retrata as posições marcadas, inclusive, de ascensão, em oposição ao outro. A desumanização é um detalhe que chocava – afirma Tatiana.

As aquarelas de Debret expõem o que o artista viu como resultado de 15 anos no país. Ao lado do arquiteto Grandjean de Montigny, ele produziu a arte efêmera, no Brasil, em que estruturas eram montadas exclusivamente para solenidades de grande porte, como a suntuosa armação em madeira para a aclamação de D. João VI, desenhadas por Debret.

Com a morte precoce de Lebreton, em 1819, o pintor de paisagens Nicolas-Antoine Taunay decidiu deixar o país após a nomeação do português Henrique José da Silva para a direção da Academia Imperial de Belas Artes, originalmente a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. Inaugurada em 1826, a instituição e seus artistas enfrentaram dez anos de resistência por parte da ala portuguesa na implantação do neoclassicismo. Para a diretora do Solar Grandjean de Montigny, no campus da PUC-Rio, professora Piedade Grinberg, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, a tradição de arquitetura luso-brasileira estava voltada para a construção de portos e fortificações.

– Os portugueses não queriam que se implantasse um estilo europeu no Brasil. Os nossos ancestrais portugueses eram ligados à questão da arquitetura por meio dos portos e fortes em que se destacavam. A herança no Rio de Janeiro era muito mais dos engenheiros militares – destaca Piedade.

Segundo ela, é possível questionar a própria ideia de uma Missão, já que os artistas não formavam uma comitiva unida e obtiveram êxito individualmente. – Esse nome de Missão Artística Francesa só foi dado em 1965, pelo historiador Alfredo Taunay, parente de Nicolas Antoine Taunay. Na realidade, eles não formavam um grupo coeso – observa.

No bicentenário, além do Solar Grandjean de Montigny, restaram na cidade o pórtico da antiga Academia Imperial, a Casa- França Brasil e o Chafariz do Rocio Pequeno.

 ► Debret: Documentarista da Corte e das ruas

Jean-Baptiste Debret (1768-1848) foi discípulo e parente do pintor francês Jacques- Louis David. Migrou para o Brasil, ao lado de outros artistas, como pintor de costumes da Missão Artística Francesa a fim de fugir do ostracismo e das perseguições pelas posições políticas controversas a favor de Napoleão Bonaparte, em meio à Restauração.

No Rio de Janeiro, ele recebeu encomendas de personalidades da realeza e se tornou o retratista da Corte. São de sua autoria telas pintadas a óleo como a Coração do Imperador D. Pedro I e a Aclamação de D. João IV, inspiradas na harmonia neoclássica em retratar feitos históricos imponentes e de suntuosidade cenográfica.

Em 1831, o artista retornou para a França, na companhia do discípulo Manuel de Araújo Porto Alegre. No mesmo ano, lançou Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, em que traduziu pictoricamente os espaços, os personagens, os ofícios, os hábitos e contradições das ruas do Rio de Janeiro. A obra foi editada em três volumes compostos por 156 pranchas.

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