Cresce hoje uma imagem "fantasmática" do estrangeiro, o que contribui para a consolidação do Estado nacional. O alerta da professora de Direito Internacional do Instituto de R.I. da USP, Deisy Ventura, feito em aula inaugural do curso de Relações Internacionais da PUC-Rio, vem acompanhado de um prognóstico negativo sobre o capital político do presidente americano, Donald Trump, um dos principais emblemas do avanço xenófobo mundo afora. Segundo Deisy, Trump "está fadado a desapontar seus eleitores", ao associar o desemprego nos EUA à concorrência estrangeira.
Ao comentar as ordens executivas de Donald Trump restritivas a refugiados e migrantes, a professora observou, a alunos e professores reunidos na PUC-Rio, que não só os Estados Unidos, mas outros governos e forças de extrema direita na Europa – como a Frente Nacional de Marine Le Pen, adversária do centrista Emmanuel Macron no segundo tirno da eleição francesa – constroem "uma imagem imaginativa dos estrangeiros". Dessa forma, argumenta a especialista, o "cidadão nacional" passa a enxergar o migrante como um culpado potencial para "todos os problemas":
– Cria-se uma imagem fantasmática do estrangeiro, como suspeito, ameaça. Isso não é uma paranoia natural do Ocidente, mas aqui operam grandes estratégias de construção de identidades para apoiar a consolidação do Estado nacional. A expressão “fabricação do estrangeiro” consegue associar os nossos fantasmas às necessidades de consolidação do Estado.
Trump instituiu duas ordens executivas em relação às políticas migratórias. A primeira foi considerada inválida, ineficaz e inconstitucional, por confrontar diversas emendas da Constituição dos Estados Unidos. Deflagrou uma sucessão de protestos e ações judiciais. Depois de, aparentemente, desistir da primeira ordem, o presidente voltou à carga. Sob o argumento oficial de deixar o país "menos vulnerável a investidas terroristas", a segunda emenda repete, na essência, as restrições da primeira, embora tenha retirado do texto pontos mais suscetíveis a batalhas jurídicas e clamores populares. Passam a ser barrados por três meses pedidos de vistos de seis países: Irã, Síria, Líbia, Sudão, Somália, Iêmen.
– Voltar atrás em vistos já concedidos é uma ideia absolutamente falsa, pois a política de concessão de vistos nos Estados Unidos não é indulgente há muitas décadas – acrescenta Deisy.
Ainda de acordo com a professora de Relações Internacionais, Trump está destinado a decepcionar seus eleitores, ao culpar os estrangeiros pelo desemprego do país, que subiu para 4,8% em janeiro deste ano. Mesmo que o presidente consiga implementar uma política migratória restritiva, os cidadãos americanos tendem a perceber, acredita ela, que a perda de vagas de trabalho decorre de fatores como automatização. (Leia reportagem sobre os impactos da automação no mercado).
– O que me parece central, não só no governo Trump, é a grande trampa – armadilha, ardil ou uma infração maliciosa das regras do jogo. Algo como “se eu não vou poder, objetivamente, responder aos anseios dos meus cidadãos, eu preciso trabalhar com a emoção deles”. E Donald Trump é um homem de espetáculos. Ele vai mexer com a emoção, e mexer com a emoção no campo das migrações internacionais é voltar ao terreno fértil que acompanha o movimento da humanidade, a formação de um dos maiores fenômenos políticos contemporâneos e, à frente deles, a formação do Estado-nação – ressalta a analista.
Para Deisy, a xenofobia, cujo avanço entranha-se na crise mundial dos refugiados, contempla dois conceitos. O primeiro deles é a xenofobia de governo, que se expressa não propriamente pelo ódio flagrante, mas por meio de uma desvinculação que leva as elites dirigentes – de uma forma muito serena – a identificarem ameaças. A xenofobia de governo se expressa por políticas públicas, ou por um conjunto de políticas convergentes.
O segundo deles é a xenofobia contestatória. Diferentemente da xenofobia de governo, manifesta-se por meio de um ódio patente, de retóricas agressivas e racistas, como se observa, por exemplo, reforça a professora, no discurso de Trump. Ela faz outro alerta:
– Quando nos referimos a esse fenômeno das migrações como crise, estamos aderindo automaticamente a essa xenofobia de governo – acrescenta Deisy.
Em 2015, o número de pessoas que se deixaram os países de origem fugindo de perseguições políticas e guerras chegou a 65,3 milhões. Um salto de quase 10% em relação ao ano anterior.
A origem da maior parte dos refugiados são a África e o Oriente Médio. Eles fogem por conta de conflitos internos, guerras, perseguições políticas, ações de grupos terroristas e violência aos direitos humanos. Metade do fluxo anual de refugiados vem da Síria, cuja guerra civil completou seis anos no mês passado.