Cátedra e nova disciplina buscam melhorar condição dos refugiados
25/07/2017 10:51
Fernanda Teixeira

Burocracia, carência de políticas públicas e preconceito castigam milhões de pessoas que, forçadas por guerras ou perseguições, buscam refúgio noutro país, observam especialistas reunidos na PUC. Cátedra Sérgio Vieira de Mello promove reflexões e qualificações em torno do tema.

O mundo somou, ano passado, 65,3 milhões de pessoas em deslocamento forçado, aponta relatório anual Tendências Globais (Global Trends), da agência da ONU para refugiados (ACNUR). A quantidade crescente do fluxo migratório imposto por guerras e perseguições, cerca de 10% superior em relação a 2015, expõe a necessidade de esforços integrados, entre governos, universidades, iniciativa privada, terceiro setor, para dirimir uma das piores crises humanitárias pós-Segunda Guerra. Um desses esforços é a implantação, na PUC-Rio, da Cátedra Sergio Vieira de Melo (CSVM), avalizada pela (ACNUR), dedicada a difundir o ensino universitário sobre temas relacionados a refúgio e promover a qualificação para iniciativas na área.

Um dos pontos de partida da cátedra é a disciplina criada para expandir o olhar sobre o fluxo global de refugiados. Destinada a abordar as perspectivas e os desafios da condição refugiada no mundo, contempla 30 horas de conteúdo teórico e 30 de conteúdo prático. Está aberta a estudantes de graduação dos cursos de  Direito, Letras, Psicologia, Serviço Social e Relações Internacionais (códigos JUR 1930, LET 1879, PSI 1858, SER 1230 e IRI 1775, respectivamente).

A novidade foi apresentada há uma semana, no debate A condição refugiada hoje, do qual participaram especialistas, como as professoras Ariane Paiva, do Departamento de Serviço Social, e Carolina Moulin, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (IRI), e refugiados, como a congolesa Mireille Muluila Mulanga e o costa-marfinês Agossou Lucien Ahouangan, residente no Brasil há três anos. Eles apontaram, entre os principais obstáculos a melhores condições para os 65 milhões de migrantes forçados, a burocracia, a carência de políticas públicas no setor e o preconceito — decorrente, em grande parte das vezes, de um desconhecimento generalizado sobre a população refugiada, 

Sem subestimar os números eloquentes do relatório anual sobre refugiados  (Global Trends), a professora Carolina Moulin pondera que devem ser avaliados "em conjunto com o crescimento da população mundial". Para ela, não não propriamente uma crise global de refugiados, do ponto de vista da quantidade, pois o fluxo corresponde a uma parte relativamente pequena da população mundial, e sim uma "desigualdade  extrema" referente à distribuição e ao acolhimento dessas pessoas:

— A figura do refugiado existe desde que existe o Estado Nacional. O refúgio surge como fruto da violência, das guerras e das facilidades de deslocamento das populações no século XX, ainda que de forma desigual. Os conflitos geradores de refugiados são concentrados no Terceiro Mundo. O acolhimento também é profundamente desigual: a Europa e os EUA recebem uma parcela pequena dessas populações. Países como Etiópia, Uganda, Irã, Líbano, Paquistão e Turquia são os que mais acolhem refugiados. O refúgio não é arcado globalmente.

O recente relatório da ACNUR confirma o alerta da professora do IRI sobre as parcelas desiguais com que a conta dos refugiados é arcada pelo mundo. A Turquia revela-se o país que mais abriga refugiados: 2,5 milhões. Já o Líbano responde pela maior concentração: 183 refugiados para cada grupo de mil habitantes. Ainda de acordo com o levamntamento das Nações Unidas, nos países industrializados, 3,2 milhões fecharam 2015 à espera de resposta aos pedidos de refúgio – o maior número registrado pela ONU. As solitações para refúgio no Brasil saltaram de 966, em 2010, para 28.670, em 2015, um avanço de 2.868%, aponta relatório do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça. 

A construções de saídas para um problema humanitário aborvido e tratado de forma tão desigual passa, segundo os especialistas reunidos na PUC-Rio, por um melhor conhecimento sobre o tema. Uma das emblemáticas confusões remete à diferença entre refugiados e migrantes. Refugiados associam-se a deslocamentos forçados por conflitos armados ou perseguições, em busca de segurança, paz, dignidade. Já migrantes escolhem deslocar-se para melhorar as condições de vida, por meio do trabalho ou educação. Significa, na prática, que refugiados não podem voltar ao país natal e migrantes continuam recebendo proteção do governo de origem.

Professora Carolina Moulin. Reprodução TV PUC

Para o professor Agossou Lucien Ahouangan, mestre em Relações Internacionais pela Uerj, um dos caminhos para melhorar a condição refugiada é a diminuição da espera pela concessão formal de refúgio. Segundo o especialista, os processos são "lentos, burocráticos, complicados". Desde janeiro de 2014, o costa-marfinense aguarda uma posição oficial sobre o pedido de refúgio no Brasil. Ele lembra que chegou por aqui em dezembro de 2013, com “algumas roupas e seus diplomas”, sem falar português. Lucien deixou o país africano para escapar do período violento posterior às eleições presidenciais de 2010 da Costa do Marfim, quando Alassane Ouattara derrotou o antecessor, Laurent Gbagbo, que se recusou a aceitar o resultado. Hoje sobrevive das aulas de francês e da ajuda de amigos. Reforça a significa parcela de refugiados, confrontados com a falta de domínio de línguas e costumes estrangeiros, lutam contra a exclusão do mercado de trabalho.

Agossou Lucien Ahouangan. Reprodução TV PUC

Já a congolesa Mireille Muluila Mulanga, membro do Programa de Atendimento a Refugiados da Caritas Arquidiocese do Rio de Janeiro, chegou ao Brasil setembro de 2014. Fugiu de grupos rebeldes ligados ao extrativismo liegal do minério coltan, que invadiram-lhe a casa. Ao lado da irmã, também desembarcou por aqui sem saber uma palavra de português e sem conhecer a cultura brasileira. Depois de sete meses vivendo com a ajuda de desconhecidos, conseguiu o atual emprego, na Caritas, "e tudo começou a melhorar". Para ela, a vulnerabilidade da mulher refugiada é maior que a dos homens, em especial aquelas com filhos. O desespero com a dificuldade em conseguir uma fonte de renda e o não menos comum preconceito sofrido pelos refugiados os deixam vulneráveis a subempregos e, em alguns casos, a condições próximas à escravidão.

Mireille Muluila Mulanga, Reprodução TV PUC

Uma das esperanças para melhorar o horizonte dos refugiados no Brasil é a Nova Lei da Migração (Lei nº13.445/2017). Nasce com a promessa de aperfeiçoar políticas públicas voltadas à população refugiada no país, e assim melhorar o acolhimento ainda muito concentrado na sociedade civil, de maneira informal, voluntária, não raramente precária. Embora os números sobre refugiados no país mostrem-se incongruentes, segundo os especialistas reunidos na PUC-Rio, estima-se que existam 30 mil pedidos de refúgio em andamento para serem avaliados por apenas 10 entrevistadores do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), organismo interministerial sob o âmbito do Ministério da Justiça.

Estas e outras questões entrarão na agenda da Cátedra Sérgio Vieira de Melo, implantada na PUC-Rio. Treze professores de cinco departamentos fazem parte da inciativa criada com a missão de promover educação, pesquisa e extensão acadêmica voltada à população em condição de refúgio. Desde 2003, o ACNUR implementa a CSVM em cooperação com universidades de diferentes estados no Brasil e com o Conare.

Além da formação acadêmica e a capacitação de professores e estudantes para demandas associadas a refúgio, a cátedra empreende trabalho direto com os refugiados em projetos comunitários. A professora Carolina Moulin espera já ter, até o próximo ano, refugiados no corpo discente do IRI em 2018. Espera também que o debate “seja o primeiro de muitas” iniciativas na Universidade para a inclusão das pessoas nesta condição no espaço acadêmico. A própria cátedra materializa esses esforços integrados. Está aberta "a todos os interessados", convidam os professores responsáveis.

Uma carreira dedicada aos direitos humanos

A cátedra, como o nome indica, é uma homenagem ao brasileiro Sérgio Vieira de Mello, funcionário da Organização das Nações Unidas, morto em agosto de 2003, vítima de um atentado a bomba em Bagdá. O diplomata ingressou na ONU em 1969 e passou a maior parte da vida profissional no ACNUR. Natural do Rio, Vieira de Mello serviu em diversas missões humanitárias e de manutenção da paz em locais como Bangladesh, Camboja, Sudão, Chipre, Moçambique, Bósnia e Herzegovina, Kosovo, Ruanda e Timor-Leste.

Em maio de 2003, foi enviado como representante oficial do secretário-geral das Nações Unidas para o Iraque, após a eclosão da guerra no país. Na capital iraquiana, teria sido alvo de um ataque suicida ao Hotel Canal, usado como sede da ONU em Bagdá. O saldo do ataque do dia 19 de agosto daquele ano foram 22 mortos e cerca de 150 feridos. 

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