O tratamento e a análise das cartas enviadas por presos ou por familiares deles à Ouvidoria Nacional de Serviços Penais do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) é a proposta do Projeto Cartas do Cárcere. O programa foi desenvolvido a partir de um edital lançado pela própria Ouvidoria e destina bolsas de pesquisa para oito graduandos e dois pós-graduandos. A professora Thula Pires, do Departamento de Direito da Universidade, é responsável pelo projeto, que reúne pesquisadores da PUC-Rio, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Universidade Federal da Bahia e Universidade de Brasília.
Uma das funções da Ouvidoria é receber demandas e denúncias de pessoas que estão em regime de privação de liberdade e dar o encaminhamento necessário do caso, dependendo do teor da carta. A realização do projeto, além do Depen, é feita em cooperação com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Segundo Thula, o Cartas do Cárcere pode ajudar a Ouvidoria a repensar a metodologia usada para avaliar as demandas e denúncias presentes nas cartas.
— Temos a possibilidade de pensarmos em outras ferramentas para lidar com o sistema carcerário e a segurança pública a partir dos relatos e das experiências das pessoas que são diretamente afetadas por eles.
A professora explica que as frentes de trabalho do projeto, que completou seis meses, são variadas. Profissionais de áreas como Direito, Serviço Social, Sociologia, Ciências Políticas, Antropologia, Relações Internacionais e Letras estão envolvidas. Conforme Thula, os alunos de Letras estão na equipe para que as cartas sejam analisadas como narrativas, histórias.
O edital determina que sejam apresentados três produtos ao final do processo. O primeiro é criar uma espécie de inventário dessas cartas que, segundo a professora, mostrará que cartas são essas, quem as escreve e quais os principais assuntos, demandas e denúncias que aparecem. Thula comenta ainda que o inventário e as cartas definirão a agenda de ação do Projeto.
Os outros produtos são uma publicação com análise detalhada e uma campanha nas redes sociais. A análise será baseada nos temas e perfis e mostrará avaliações sobre a sociedade brasileira, sistema carcerário e as propostas atuais de políticas de segurança pública. Thula destaca a falta de trabalhos que atuem na análise das cartas de presidiários para órgãos públicos.
— Os trabalhos que temos sobre cartas do cárcere são normalmente de presos políticos ou de cartas enviadas para familiares, que são exemplos muito específicos. Eu nunca tinha visto um trabalho envolvendo cartas de presos comuns encaminhadas para órgãos públicos. Isso faz uma diferença muito grande porque coloca homens e mulheres privados de liberdade na condição de sujeito político, o que efetivamente deve mobilizar o Estado a exigir o cumprimento de direitos. Essa possibilidade nos motivou.
Dependendo do tipo denúncia ou de demanda que esteja na carta, a forma de exposição pode gerar risco efetivo de morte e outras violências para os presos. Por isso, como afirma Thula, as cartas devem ser lidas com seriedade e cuidado. Ela ainda critica o atual sistema carcerário brasileiro.
— Não lidamos com as cartas como se elas estivessem ali para visitação pública, como se fossem um folhetim. Elas nos mostram falas em primeira pessoa dos que estão diretamente envolvidos no sistema carcerário brasileiro. Ele costuma ser pensado por indivíduos que não são afetados por esse modelo de insegurança pública e esse processo de desumanização que é o cárcere no Brasil.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2016, 61,6% da população carcerária do Brasil são pessoas negras. Entre os motivos que levaram o grupo a inscrever o projeto no edital, de acordo com Thula Pires, estão o contingente carcerário brasileiro ser predominantemente negro e o fato das pesquisas existentes não “racializarem” a discussão. Para a professora, o racismo é questão primordial para progredir com o Cartas do Cárcere.
— As falas e análises sobre a realidade carcerária que vejo, em sua maioria, são feitas por pessoas que não vivenciam aquilo e que, portanto, normalmente não se implicam diretamente nos efeitos do racismo. Deveriam se implicar, porque se o racismo onera desproporcionalmente negros, é por privilegiar desproporcionalmente brancos.
Professor de Direito Penal na PUC-Rio e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Rogério Nascimento acompanhou a atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Carmen Lúcia, em visitas a presídios federais para avaliar a situação do sistema penitenciário brasileiro em 2017. Para Nascimento, as cartas dos presos enviadas para o poder público ganham força em razão da falta de assistência jurídica. De acordo com ele, a principal ausência dentro dos presídios é da Defensoria Pública e da Ouvidoria.
— A Defensoria Pública vai a todas as unidades prisionais com uma frequência não maior do que quinzenal. O ideal seria que todas as unidades tivessem um defensor fixo. Digamos que uma unidade tenha 1.500 presos, algo comum. É feito um rodízio de atendimento por letra. Desse modo, não é que o preso, de 15 em 15 dias, consegue ter acesso ao defensor. O encarcerado, fazendo um cálculo de boa vontade, não consegue falar mais do que duas vezes, no ano, com o defensor público. Por isso, ele escreve e manda para quem pode. Quando faço inspeções, saio com uma lista enorme de nomes de pessoas que me contam histórias.
Nascimento destaca que um trabalho como o Cartas do Cárcere traz luz para a reação natural dos presos que não se conformam em não serem vistos. Para ele, o processo histórico dos séculos XX e XXI apresenta uma sociedade que virou as costas para o problema penitenciário, tornou a pena e o apenado invisíveis.
- A história do sistema punitivo do Ocidente moderno começa com a pena sendo feita em praça pública. Com a privação da liberdade, que se transforma em um modelo de punição, tenta-se, de alguma maneira, contribuir para que a pessoa se ressocialize no futuro. No entanto, há um efeito perverso, que é deixar a pena atrás do muro. O encarcerado desaparece para a sociedade. Isso é, na minha opinião, uma das razões que explica como chegamos a um cenário tão absurdo como o do sistema carcerário brasileiro. Muitas pessoas não olham para o humano que está ali.