Analistas: morte de Fidel facilita abertura em Cuba, ameaçada pelo governo Trump
19/12/2016 09:30
Gustavo Côrtes e Paula Strecht

Para especialistas como o professor da PUC-Rio Luis Manuel Fernandes, o adeus do líder carismático representa uma perda do capital político do regime cubano, embora não implique mudanças administrativas. Janela de transformações socioeconômicas depende de reordenação de forças internas e da relação com os EUA

Fidel Castro. Foto: Agência Brasil

A morte do líder da Revolução Cubana, aos 90 anos, na noite da sexta-feira passada, deflagrou uma repercussão mundo afora correspondente à estatura histórica e à não menos substantiva controvérsia amealhadas pelo principal personagem político da segunda metade do século passado ao longo das cerca de cinco décadas de poder absoluto na ilha caribenha. Desde sábado comentários favoráveis e contrários ao "eterno comandante", como reverenciam os admiradores, inundam jornais, mídias sociais, gabinetes da cúpula mundial. Percorrem as esquinas de Havana e de Miami, exílio de milhares de opositores ao regime consolidado nos anos 1960 com o apoio da extinta União Soviética. Espreitam o extenso funeral, que segue até domingo, quando as cinzas de Fidel Castro finalmente descansarão no Cemitério de Santa Ifigénia, em Santiago de Cuba, depois de uma turnê de mil quilômetros pelo país. A despedida cercada de pompa, circunstância e ecos internacionais expõe o apelo simbólico imune às cinzas. Mesmo afastado desde 2006 da rotina de governo, assumido pelo irmão Raúl, e esvaziado pelo desembarque  da polarização capitalismo-socialismo no bonde da História – soterrada com a queda simbólica do Muro de Berlim, em 1989  –, um debilitado Fidel Castro mantinha influência nada desprezível no horizonte social, geopolítico e econômico de Cuba. Até que ponto o mito Fidel seguirá influente e se refletirá, por exemplo, no ritmo (ainda lento) de uma reabertura interna e externa revela-se incógnita equivalente aos sentimentos contraditórios despertados pelo "último revolucionário do século XX", para uns, ou pelo ditador implacável, para outros.

Dez entre dez analistas do cenário internacional associam também as incertezas sobre os rumos geopolíticos, sociais e econômicos de Cuba à dinâmica sucessória capinateada por Raúl, questão inevitável para um presidente de 85 anos, e à recente vitória de Donald Trump na corrida presidencial americana. O novo inquilino da Casa Branca, cuja posse está marcada para 20 de janeiro, reveste de dúvidas a reaproximação diplomática entre Estados Unidos e Cuba costurada por Barak Obama, avaliam especialistas. Uma parte deles acredita, contudo, que Trump tenderá a conservar o combinado pelo antecessor, até porque esta agenda pertence ao século passado e as prioridades da pauta internacional seriam outras, centradas na Ásia, na Europa e na recuperação do mercado interno, não necessariamente nesta ordem.

Analistas consideram, por outro lado, que a morte de Fidel possa abrir, cedo ou tarde, uma janela a transformações socioeconômicas e políticas na ilha. Ainda assim, condicionam mudanças efetivas a uma reordenação de forças decorrente da perspectiva de que Raúl Castro não tardará a deixar o governo. Para o professor do Instituto de Relações internacionais da PUC-Rio (IRI) Luis Manuel Fernandes, a morte de Fidel Castro representa uma perda de capital político do regime. Ele ressalta também o caráter decisivo da gestão Trump para a relação de Cuba com o restante do mundo:

– Embora não provoque grandes mudanças administrativas, pois Fidel estava afastado do governo desde 2006, há uma perda na legitimidade que o líder carismático dá ao regime. Também vai pesar para as relações internacionais de Cuba o posicionamento de Donald Trump quanto à reaproximação diplomática entre Cuba e Estado Unidos. Se Fidel continuasse vivo, Trump talvez se sentiria mais motivado a revogá-la. Fidel era menos simpático do que Raúl à retomada das relações entre os dois países. Sua morte pode diminuir a resistência dentro do partido à reaproximação diplomática. Tudo vai depender de como os líderes do governo cubano conduzirão o país e o regime depois da morte de Fidel – avalia.

Já o professor de História Marcos Pamplona, também da PUC-Rio, considera a abertura da ilha ineviutável. Mas concorda que a dimensão das mudanças depende da forma como as tensões internas do partido serão equacionadas:

– A abertura é necessária, porque o mundo mudou e não dá para continuar com a receita de bolo antiga. Vai haver uma briga interna dentro do partido para decidir se haverá ou não abertura. Se houver, o quão significativa ela será. Para os cubanos é um momento importante de renovação.

Para o também professor de História da PUC-Rio Rômulo Mattos, as conquistas sociais cubanas podem correr risco caso a abertura econômica seja abrupta:

– A morte de Fidel representa risco às conquistas sociais de Cuba, na medida em que dá margem a pressões de setores descontentes com o regime por abertura econômica. Se o processo de abertura for acelerado, a entrada do capital pode comprometer o acesso do povo cubano a saúde e educação, por exemplo. A ilha é economicamente frágil. Mesmo se todos passarem a receber salários maiores, não vão conseguir custear no setor privado os serviços que o Estado cubano oferece gratuitamente.

No cenário externo, os impactos da morte de Fidel convergem, sobretudo, para dois ambientes primordiais: Estados Unidos, cuja reaproximação diplompática com Cuba entra em compasso de interrogação não só pelo adeus do líder simbólico da ilha, mas também, ou principalmente, pela natureza esboçada do governo Trump; e América-Latina, cuja esquerda tradicionalmente manteve no regime castrista uma referência emblemática e tenta juntar os cacos de de derrotas políticas expressivas, na Argentina, no Brasil e na Venezuela. Para, Fernandes, o "baque é menor", porque Fidel não exercia mais funções administrativas:

– A esquerda latino-americana perde um capital político importante. Como Fidel não estava no poder, o baque é menor. Há um problema em regimes socialistas, que é a dependência do líder carismático da revolução.

Já Pamplona considera a morte de Fidel pouco relevante para a esquerda latino-americana. Para ele, o que faz a corrente perder força é um processo global de crescimento da direita:

– Fidel era um mito, e os EUA ajudaram muito na criação desse mito. Mas o regime não é só a expressão dele. A morte de Fidel não prejudicará a esquerda. A esquerda latino-americana está sendo afetada por um processo global de recrudescimento do conservadorismo, expresso nos Estados Unidos com a Eleição de Trump e na Europa com o crescimento da direita.

Para Mattos, a esquerda latino-americana deveria defender as conquistas sociais do regime castrista e, ao mesmo tempo, fazer críticas ao autoritarismo:

– Há contradições na figura de Fidel Castro; a principal delas é o fato de ele ser um ditador. E de ter idealizado e liderado um regime que mantém uma elite burocrática e suprime as liberdades, desde a possibilidade de sair da ilha até exercer a sexualidade. A esquerda latino-americana deveria trabalhar na manutenção das conquistas sociais de Cuba e, ao mesmo tempo, fazer críticas ao regime autoritário. O problema é esse: a esquerda exalta a figura de Fidel sem reconhecer e criticar suas contradições.

Pamplona aponta os excessos aos quais Mattos se refere como a principal a razão do afastamento de muitos dissidentes políticos, que depositaram na revolução e em Fidel a esperança da utopia socialista. Ele avalia:

– Fidel é uma figura sem igual na história em razão do tempo que fica no poder. É uma geração inteira. O início da Revolução gerou muita esperança, inclusive em intelectuais, que se mobilizaram e se envolveram com a revolução. Havia todo um contexto de Guerra Fria que foi favorável a isso. Mas a revolução tomou rumos que a transformaram em um regime muito fechado, sustentada por um líder muito forte e carismático. A repressão às religiões, aos homossexuais e opositores políticos fez com que muitas pessoas que acreditavam na revolução e nos ideais socialistas se afastassem.

Mattos lembra que muitos dissidentes migraram por não concordarem com a conduta de Fidel, mas continuaram a acreditar na ideologia pregada pela revolução. Segundo o especialista, a morte do ex-revolcionário aumenta a chance de regresso dos dissidentes à ilha:

– Existem muitos dissidentes políticos que planejavam voltar a Cuba depois da morte de Fidel, pois o problema deles não é com o socialismo, mas com os excessos dos irmãos Castro. Essas pessoas teriam um projeto alternativo para o país.

Para uns, um pai insubstituível. Para outros, ditador implacável. O caráter controverso da principal figura política latino-americana da segunda metade do século passado conduz uma biografia recheada de utopias, sangue, suor, lágrimas, conquistas e contradições. Assim destacam, quase de forma consensual, analistas e líderes mundiais diante do adeus do último grande remanescente da Guerra Fria, cuja influência nos rumos de Cuba resistia ao desembarque no bonde da História e mesmo à aposentadoria imposta, em 2006, pela doença.

Fidel Castro. Foto: Andrew Saint-George

Memória social transita entre a mitificação do revolucionário libertário e o repúdio ao ditador

Talvez a História jamais chegue a absolvê-lo ou mesmo a julgá-lo, como havia vaticinado ao se defender no julgamento pelo ataque contra o ditador Fulgecio Batista, em 1953. "Condenem-me, não importa, a História me absolverá", disparou o jovem revolucionário, com a indefectível retórica, numa das muitas frases que se tornariam célebres. Condenado a 15 anos de prisão e anistado em 1955, um ano depois zarparia do México, a bordo do iate Granma, para comandar a guerrilha que culminaria na queda de Fulgencio, em 1959. Produzia-se naquele pedacinho do Caribe uma vitória simbólica ecoada por anos na América Latina, e comemorada por intelectuais como o filósofo Jean-Paul Sarte. Cuba e Fidel jamais seriam os mesmos.

A memória social do eterno "comandante", como orgulham-se em chamá-lo os apoiadores do regime instalado há quase 60 anos na ilha caribenha, transita entre a mitificação do revolucionário responsável por aprimorar serviços públicos de educação e saúde – transformados em moeda de troca pelo petróleo venezuelano – e o repúdio às perdas de liberdades e de vidas que desvirtuaram o plano libertário original. "A História julgará o impacto desta figura singular", ressalta, em nota, o presidente americano, Barack Obama, artífice da recente retomada de relações diplomáticas com Cuba.

A trajetória política e simbólica de Fidel Castro confunde-se com o enfrentamento aos Estados Unidos. Eclodiu com a nacionalização de emporesas e fazendas, materializou-se na vitória sobre a invasão americana na Baía dos Porcos, em 1961, ganhou corpo com o apoio da União Soviética ao longo da década e beirou a hecatombe planetária num dos casos mais preocupantes da Guerra Fria: o abrigo cubano a mísseis soviéticos, em 1962.

Seria improvável que o "comandante" tivesse previsto o quão longe e esgarçada iria a Revolução Cubana rascunhada quando ele ainda contava 26 anos e tentava invadir, em 1953, a segunda fortaleza militar da ilha. Ou mesmo seis anos mais tarde, quando finalmente derrotava Fulgencio Batista, o que seria considerado marco de uma América Latina polarizada.

Sob o comando do ex-estudante de Direito da Universidade de Havana, nascido na província de Birán, Cuba converteu-se em santuário da esquerda e inspirou resisteências a ditaduras na América Latina e até em países além-mar. Aos poucos a aura libertária e sonho socialista perderam espaço para censura e retaliações violentas a opositores. Com poder absoluto, prolongado por 47 anos, Fidel Castro removeu adversários com prisões, execuções, exílios. No início dos anos 1980, 125 mil cubanos deixaram o país em busca de exílio nos Estados Unidos. Parte deles e de seus descendentes estão entre os que comemoraram a morte de Fidel, no sábado passado. Outros tantos, porém, choraram o adeus do mítico revolucionário, cuja imagem, para os seguidores e admiradores, associa-se a um paradigma da justiça social e da solidariedade no Terceiro Mundo. Assim ressaltou, por exemplo, a presidente do Chile, Michelle Bachelet, ao lamentar a morte de um líder que lutou pela ‘’dignidade e justiça social em Cuba e na América Latina’’.

Embora estivesse afastado da rotina presidencial desde 2006, quando assim impuseram as recomendações médicas, Fidel jamais assumiu oficialmente a aposentadoria. Mesmo descolado das deliberações administrativas, comandadas pelo irmão Raúl, e de um mundo esvaziado desde o fim do século XX da polarização na qual construiu sua passagem para a História, o mito Fidel ainda pulsava na moldura do governo e no horizonte dos cubanos. Com que intensidade e por quanto tempo continuará pulsando, provavelmente só a História conseguirá responder. 

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