Colômbia: acordo é ponto de partida, ressalvam especialistas
16/12/2016 16:27
Gustavo Côrtes

Para analistas como Isa Mendes e Paulo Wrobel, do IRI, processo de paz e de integração nacional terá de superar descompasso entre o cessar-fogo firmado pelo governo com o grupo guerrilheiro Farc e o plebiscito contrário ao acordo 

Protesto contra a FARC em Medellin. Foto: Reprodução/xmascarol

Aprovado pelo Senado colombiano, o acordo de paz entre as Forças Armadas Revoluvionárias Colombianas (Farc) e o governo de Manuel Santos, representante da centro-direita do país e líder das negociações, reverteu a derrota imposta pelo voto popular no plebiscito de 10 de outubro, quando os colombianos barraram o combinado. Em uma disputa acirrada, a recusa às concessões às Farc, liderada pelo ex-presidente Álvaro Uribe, havia vencido por 50,2% a 49,7% dos votos. Ao longo de 52 anos, a guerrilha acumula pre220 mil mortos, 45 mil desaparecidos e 7 millhões de deslocados internos.

O acordo prevê a criação de um tribunal especial para julgar os crimes cometidos por guerrilheiros no conflito. Embora preveja condenação para crimes hediondos, como tortura, sequestro e estupro, as penas serão cumpridas em espaços de “movimentação limitada e vigilância”, em vez de cadeias comuns. Os magistrados ainda podem anistiar tais crimes, se entenderem que houve “conotação política”. As cortes se dissolverão numa década e só aceitarão acusações nos primeiros anos.

O governo colombiano se comprometeu em ajudar as Farc a se tornarem um partido político, que contará com uma cota de 10 vagas no Legislativo, cinco na Câmara e cinco no Senado. Também fazem parte do combinado programas de restituição da posse de terras a camponeses e de combate à pobreza. Como contrapartida, as Farc entregarão dinheiro obtido com o narcotráfico a um fundo de indenização das cerca de 8 milhões de vítimas do conflito. O cessar-fogo bilateral será feito dentro de 180 dias depois da validação oficial do pacto.

Para a doutoranda do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (IRI) Isa Mendes, especialista em política colombiana, a aprovação do pacto no Senado em dissonância com a decisão tomada pela população no plebiscito de outubro “diminui a legitimidade do acordo”:

– O fato de ter sido aprovado no Senado em desacordo com o resultado da consulta popular retira grande parte da legitimidade do acordo. Ainda mais se levarmos em conta as declarações do presidente Manuel Santos durante todo o processo, apontando que a decisão final seria da população. Mas uma coisa é certa: todos querem a paz, os contrários e os favoráveis ao acordo – ressalva.

Segundo Isa, um dos pontos de maior divergência entre colombianos é a criação dos tribunais exclusivos para julgar ex-guerrilheiros, que podem ser absolvidos por crimes cometidos em confrontos:

– Os julgamentos por tribunais exclusivos foram talvez o ponto mais polêmico do acordo, pois muitas pessoas acham que as condenações previstas serão insuficientes.

Para o professor do IRI Paulo Wrobel, a anistia de crimes cometidos pelas Farc é “inadmissível”.

– Quando se fala em crimes cometido pelas Farc não são violações pontuais e em pouca quantidade. São 50 anos de crimes brutais que abalaram profundamente a sociedade colombiana. Existem movimentos na Colômbia de associações de familiares de vítimas das Farc, e esses grupos protestaram contra o acordo. É inaceitável passar uma borracha por cima de todos os crimes e começar do zero. O que será feito? E como ficam vítimas como Ingrid Betancourt, mantida seis anos sob sequestro? E todas as famílias que perderam parentes pelas mãos das Farc em situação de extrema crueldade?

Somado à possibilidade de anistia a crimes hediondos, o suporte que o governo colombiano dará às Farc na transição de grupo guerrilheiro para partido político, por meio da instituição das 10 cadeiras cativas no poder legislativo, sem a necessidade de votos populares, também gera tensões na sociedade colombiana. Isa observa:

– A possibilidade de atuação parlamentar de ex-guerrilheiros gera receio na sociedade colombiana, que ainda não sabe os parâmetros para decidir quem ocupará esses cargos. A participação política das Farc precisava se dar de uma forma ou de outra. Será difícil reverter na Câmara a vitória obtida no Senado pelos defensores do acordo, mas vai haver reação política.

"Não podemos desconsiderar as décadas de violência na Colômbia. O acordo com as Farc não significa a solução para todos os problemas, mas o início de uma mudança no país", avalia a estudante Luisa Hernandez, de 18 anos, aluna de Antropologia na Universidade Pontifícia Javeriana de Bogotá. Apesar de perceber "um país polarizado", ela acredita que o desejo comum de paz ajudará a resolver impasses e divergências: 

- No dia do plebiscito as pessoas estavam muito desanimadas e as redes sociais, cheias de críticas ao país. Depois, por vários dias as discussões foram constantes entre aqueles que tinham votado ‘sim’ e os que tinham votado ‘não’. Hoje tudo está mais calmo. Ficou claro que o processo continua, e há um ar de esperança de que as coisas vão mudar para a Colômbia

Wrobel prevê dificuldades no processo político subseqente ao acordo, pois a rejeição ao grupo de ex-guerrilheiros ainda é grande, como expressa o resultado do plebiscito. Ele acredita que a integração depende da dinâmica social colmbiana:

– O fato de se ter chegado a um acordo é positivo, mas isso vai depender fundamentalmente da dinâmica da sociedade colombiana, de como vai reagir ao acordo. Vai depender de como será o processo de integração política das Farc, como vai ser a recepção daqueles cujos familiares foram mortos pelas Farc – projeta – O acordo com as Farc talvez seja crucial, mas não dá conta de toda a complexidade da sociedade colombiana. Por outro lado, a Colômbia é um país razoavelmente bem administrado, é um país que tem tradição econômica coerente, é um país com uma visão de política econômica avançada em muitos aspectos. É o paradoxo dos países complexos, como a Colômbia e o Brasil, onde há desigualdades econômicas e sociais e grupos querendo se expressar e tentando se organizar.

Para os dois especialistas do IRI, o acordo, mesmo que seja ponto de partida para a paz na Colômbia, não resolve a violência. Wrobel enxerga, entretanto, efeitos positivos para o continente:

– O acordo é positivo, interessa todo mundo que dê certo. Interessa aos Estados Unidos, a Cuba, ao Brasil. Mas acho cedo para dizer que apenas o acordo vai resolver as questões do país. O acordo é uma espécie de ponto de partida, e tudo depende de como as coisas vão se desenvolver a partir de entrada das Farc na política. A implicação fundamental é estabelecer o início de um processo de pacificação e estabilidade na América do Sul, pois esse movimento guerrilheiro, mesmo não tendo grande influência em outros países, desestabilizava a situação do continente, porque a Colômbia é um país central, que faz fronteira com vários países. Logo, interessa à região a estabilidade política da Colômbia.

Ainda há setores das Farc resistentes ao cessar-fogo, fora outros grupos armados que ainda atuam no território colombiano, observa Isa. Para a especialista, o processo de pacificação e estabilização exige habilidade política do governo colombiano e até a participação de observadores internacionais da ONU:

– Embora as Farc venham adotando um tom de moderação durante as negociações de paz, há um temor por parte de ex-guerrilheiros do grupo quanto à possível reação de outros grupos paramilitares contrários às Farc depois do fim da proteção de 180 dias, concedida pelo governo colombiano, durante o desarmamento do grupo. Para que isso não ocorra, é importante haver uma preparação de segurança do governo colombiano e da comissão de observação da ONU, que está na Colômbia para acompanhar o cessar-fogo. 

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