Cenários da história carioca
05/03/2015 00:00
Bárbara Baião, Rafael Chimelli e Rayanderson Guerra/Foto: Matheus Salgado e Pedro Myguel Vieira

Após séculos de urbanização, as paisagens naturais do Rio de Janeiro carregam marcas da história brasileira.

Lagoa Rodrigo de Freitas, originalmente chamada Sacopenapã, era cercada por manguezais e brejos

Entre montanhas e o mar foi fundada, em 1565, por Estácio de Sá, a São Sebastião do Rio de Janeiro. A cidade de belas praias, clima tropical e vegetação abundante, habitada pelos índios Tamoios, conquistava os exploradores que entravam pela Baía de Guanabara. Coberta por Mata Atlântica, a cidade das lagoas, rios e montanhas à beira-mar tem em cada cenário natural marcas da história do Brasil. Após 450 anos de urbanização e crescimento demográfico, a paisagem foi modificada, mas ainda mantém o mesmo encanto do descobrimento.

O município reúne três ecossistemas associados predominantes do bioma da Mata Atlântica: no litoral e entorno os manguezais, elementos da restinga e, no interior, a floresta tropical. Segundo o Reitor da PUC-Rio, padre Josafá Carlos de Siqueira, S.J., doutor em ciências biológicas, a diversidade ecossistêmica de fauna e flora da cidade enriquecem a paisagem natural e garantem a multiplicidade biológica.

 - A cidade é um espaço ambiental extremamente rico e diversificado, composto por ecossistemas com grande pluralidade de espécies. A Mata Atlântica está presente nos relevos montanhosos da cidade e tem uma característica ímpar de abrigar fauna e flora singulares. Faixas de restinga e manguezal também são encontradas no Rio e têm características igualmente ricas e importantes para a manutenção do equilíbrio ambiental.

As praias do litoral carioca são compostas por ecossistemas marinhos ricos em diversidade de espécies da fauna oceânica. Já os manguezais, presentes nas margens de lagoas e baías, são um ecossistema costeiro de transição entre os ambientes terrestre e marinho, e resistentes ao fluxo da maré. O biólogo Mario Moscatelli ressalta a importância dos ecossistemas costeiros associados pela abundância de água e diversidade de espécies.

 - A existência dos ecossistemas costeiros em uma área geográfica reduzida, com variedade de altitude, nas planícies costeiras e maciços, e proximidade ao mar, nas lagoas, baías e praias oceânicas, geravam uma variedade de ambientes que refletiam em sua variadíssima fauna e flora.

Segundo dados de 2010 da Secretaria Municipal do Meio Ambiente sobre o levantamento da Mata Atlântica, no Rio de Janeiro, ainda há 28,9% da Mata Atlântica nativa no município. Os ecossistemas que mais sofrem com o desmatamento são a restinga e o mangue. De acordo com os dados, os ecossistemas correspondem a apenas 4,4% da área do município.

O aumento da degradação e a perda de partes da vegetação nativa começou na colonização e urbanização da cidade. Em 1808, quando a Família Real Portuguesa desembarcou em Salvador, o Brasil, até então colônia extrativista, que abastecia Portugal com ouro, cana de açúcar e fumo, tinha vasto território virgem.

O crescimento populacional no Rio, após a instalação da corte, em 1808, elevou a necessidade de alimentos para fixar as pessoas na região. O aumento do consumo, segundo a professora Rejan Rodrigues Guedes Bruni, coordenadora do curso de graduação em Ciências Biológicas da PUC-Rio, e a urbanização crescente causou a supressão de parte da vegetação original da cidade. A população que ocupava as margens da Baía de Guanabara, área da atual Praça Quinze de Novembro, acabou se deslocando para as regiões centrais, em direção ao Maciço da Tijuca. O trajeto de ocupação do território avançou entre florestas de baixada e áreas de manguezal.

 - Havia locais de predomínio da floresta de baixada encharcada, com muitas espécies típicas da Mata Atlântica e, na região da Praça Onze, antiga zona de meretrício, os manguezais, por isso a região era chamada de mangue, em alusão à vegetação original do local. Para fixar essa população foi necessário produzir açúcar e carne em grandes fazendas ao redor da Baía de Guanabara. Quando analisamos a história de ocupação da Mata Atlântica no Rio, constatamos que a faixa de vegetação de baixada serviu para a urbanização da cidade e para produção de insumos - explica Rejan.

Ponto de entrada dos exploradores portugueses, no século XVI, e de desembarque da Família Real portuguesa, três séculos depois, a Baía de Guanabara de águas límpidas, vegetação exuberante e enseadas de areia branca, retrato de um paraíso tropical, sofreu com o processo de ocupação e, mais tarde, de urbanização. Historicamente, o cartão postal, que abriga ecossistemas como os mangues, os brejos, elementos de restinga e costões rochosos, sempre fascinou visitantes e moradores da cidade pelas belezas naturais.

Baía de Guanabara, ponto de entrada dos portugueses no século XVI, sofreu com o processo de ocupação

A Baía de Guanabara tem atualmente 377 quilômetros quadrados de área e cerca de 3 bilhões de metros cúbicos. Os rios que desaguam no espelho d’água da baía nascem na Serra do Mar, cadeia montanhosa que se estende por aproximadamente 1.500 quilômetros, entre o Rio de Janeiro e o norte de Santa Catarina, coberta por Mata Atlântica.

Morros e montanhas formam as serras e maciços que encontram com o mar. O contraste entre as formações e o oceano cria cenários únicos, com formações de lagoas e enseadas nos vales e baixadas. Apesar da pequena extensão territorial, de cerca de 1.200 quilômetros quadrados, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE), o Rio tem grande concentração de montanhas.

A chegada da Família Real ao Brasil, entretanto, não ficou restrita à devastação do meio ambiente, posteriormente, representou avanços nos estudos de botânica do Rio de Janeiro. O Jardim Botânico, iniciativa de Dom João VI, foi fundado em 1808 e, inicialmente, tinha como principal objetivo fazer experiências e cultivar plantas que gerassem retorno econômico. Em 1890, o botânico João Barbosa Rodrigues assumiu a direção do parque e inaugurou o herbário, a biblioteca e o museu, impulsionando a pesquisa científica.

 - O Jardim Botânico é a primeira grande instituição científica do Brasil. O objetivo foi criar um espaço de acondicionamento de plantas exóticas que tivessem interesse econômico. Trazer as belezas naturais para os centros das cidades é uma concepção moderna e contemporânea ao tratar as questões de preservação da biodiversidade - diz Rejan.

Dom Pedro II manteve as iniciativas de preservação do meio ambiente, implementadas pelo avô, Dom João VI. A Floresta da Tijuca foi devastada pelas plantações de café, ocupações desordenadas e a extração de madeira, desde a chegada da comitiva real. Diante da situação, o Imperador do Brasil ordenou, em 1861, que as áreas de ocupação fossem desapropriadas e determinou o início do processo de reflorestamento da região, comandado pelo Major Manuel Gomes Archer.

O Maciço da Tijuca abriga a maior floresta urbana do mundo, resultado do reflorestamento no século XIX

A decisão contribuiu para conservar espécies de fauna e flora e regenerar a vegetação. Para a supervisora de pesquisa do Arquivo Nacional, Cláudia Heynemann, escritora do livro Floresta da Tijuca, Natureza e Civilização, de 1995, o reflorestamento está relacionado à atribuição de valor à Floresta, pela elite da época da colonização. A Floresta da Tijuca passou a ser vista como um ambiente de distinção, um lugar de saúde e de clima ameno, em que os mais ricos passavam os verões.

- Embora se associe à obra do reflorestamento à falta d’água no Rio de Janeiro, o problema era a distribuição. No fim do século XIX, Paulo de Frontin se comprometeu a buscar água no Tinguá e resolver a crise do abastecimento, e fez isso. O reflorestamento não está ligado somente à preservação dos mananciais, havia uma atribuição de valor ao ambiente da Floresta.

Estima-se que tenham sido plantadas cerca de 80 mil mudas de árvores nativas e exóticas na região da Floresta da Tijuca sob o comando do Major Archer. Em 1961, foi criado o Parque Nacional da Tijuca, em uma área de 3.953 hectares, o correspondente a 3,5% da área do município. O Parque é composto pelas áreas da Floresta da Tijuca, Serra da Carioca, Pedra Bonita e da Gávea, Pretos Forros e Covanca.

Bem perto da Floresta da Tijuca está outro cartão postal natural, envolvido pelos bairros Ipanema, Gávea, Leblon, Copacabana e Jardim Botânico: a Lagoa Rodrigo de Freitas, originalmente chamada de Sacopenapã, pelos índios Tamoios. De acordo com Moscatelli, a Lagoa já foi cercada por manguezais, brejos e vegetação de restinga. A urbanização e os aterros devastaram a maior parte da vegetação original, tanto que há uma suspeita de que, antes, o espelho d’água era o dobro do tamanho atual, que é de cerca de 2,5 quilômetros quadrados.

- Assim como a Baía de Guanabara, a Lagoa também foi transformada em latrina pelo crescimento urbano, situação alterada apenas há poucos anos, quando as mortandades do início do século geraram uma reação da sociedade, o que obrigou a Companhia Estadual de Águas e Esgoto (Cedae) a conduzir o esgoto, gerado na periferia, ao emissário de Ipanema. Após essa mobilização, os peixes pararam de morrer.

Moscatelli classifica a Lagoa como uma das áreas que serão utilizadas como praças olímpicas, que atualmente está em melhor condição ambiental. Para o biólogo, a Lagoa necessita, por ser um ecossistema naturalmente delicado, de monitoramento ambiental permanente das condições físico-químico e biológicas, ações de monitoramento e fiscalizações que inviabilizem qualquer lançamento de esgoto.

A beleza paisagística da cidade é ainda enriquecida pelo Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, conhecido como Aterro do Flamengo. Com projeto arquitetônico e urbanístico do arquiteto Affonso Eduardo Reidy e projeto paisagístico de Roberto Burle Marx, o Aterro do Flamengo foi idealizado pela arquiteta e paisagista autodidata Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, a Lota. A concepção do Parque ocorreu entre 1954 e 1959 com o objetivo inicial de construir vias expressas, que ligariam a Zona Sul e o Centro. No entanto, por influência de Lota Macedo, foram construídas duas vias e um parque com áreas de lazer e extensa área verde.

As obras começaram em 1961, entre o Aeroporto Santos Dumont e a enseada de Botafogo, com material do desmonte do Morro de Santo Antônio. O parque foi inaugurado em 1965, com 1 milhão e 200 mil metros quadrados de área verde à beira- mar e representações de todos os ecossistemas brasileiros na flora. Aterrar parte do mar para criar um parque pode parecer, à primeira vista, prejudicial ao meio ambiente, porém, padre Josafá explica que os ganhos em diversidade de espécies da flora e paisagísticos para o município foram significativos.

- Quem vê a paisagem do antes e depois do Aterro do Flamengo vê a diferença. Por mais que o mar tenha sofrido certo recuo, do ponto de vista paisagístico e da diversidade biológica, aquela área foi extremamente enriquecida. Burle Marx teve a ideia de construir uma área com espécies de plantas internacionais e nacionais. O Aterro é um dos trunfos da cidade. 

Imperatriz cientista

Amante da botânica e da mineralogia, a Imperatriz Leopoldina de Habsburgo, primeira mulher de Dom Pedro I, foi pioneira na Corte Portuguesa ao perceber a diversidade da natureza do Rio de Janeiro. Com a comitiva que trouxe a austríaca para o Brasil, em 1817, veio uma expedição científica, patrocinada pelo pai de Leopoldina, o imperador da Áustria, Francisco II. A ideia era incentivar o estudo do meio ambiente na colônia. O trabalho contribuiu para acervos de museus da Europa e embasou documentos sobre a fauna e flora brasileira.

A própria imperatriz se encarregou do envio de aves e amostras de minerais para cortes europeias. A educação refinada que recebeu ainda sob o título de arquiduquesa do império austríaco contribuiu para que acumulasse vasto conhecimento sobre o assunto. O envolvimento de Leopoldina na coleta, armazenamento e estudo de sua coleção permite classificá-la como a primeira museóloga do país.

Na exposição Leopoldina, a Imperatriz do Brasil, montada no Museu Histórico Nacional, no Centro, havia uma sala dedicada ao interesse científico da imperatriz. As mais de mil cartas que escreveu ao longo da vida foram o fio condutor da mostra e revelam, entre outros assuntos, indagações de Leopoldina sobre seus estudos. Para a historiadora Solange Godoy, curadora da exposição, a vinda da austríaca para o Brasil foi fundamental para incentivar pesquisas no campo das ciências naturais.

 – Podemos dizer que a biodiversidade brasileira começou a ser decifrada a partir do interesse da imperatriz. Até o processo de abertura dos portos, a riqueza natural do Brasil era uma interrogação para o mundo.A expedição científica que veio com a chegada de Leopoldina foi um grande avanço nesse sentido.

Além do meio ambiente, o esforço para compreender o panorama político do Brasil são duas vertentes que caracterizam a imperatriz. Para a historiadora, a infância vivida em uma Europa tumultuada por guerras napoleônicas foi crucial para fazer de Leopoldina uma mulher atenta às questões de seu tempo.

Mares da história

As praias do Rio foram porta de entrada para colonizadores. Hoje, são locais de lazer da cidade

Além de terem sido a porta de entrada para os portugueses, e sediarem as batalhas contra navios franceses no período colonial, as praias do Rio de Janeiro apresentam ainda como característica uma geografia diferente das outras do litoral brasileiro. A proximidade da Serra do Mar permitiu que as 43 praias cariocas, segundo o Inea, repousassem entre afloramentos rochosos. Eles servem de âncoras que encapsulam parte do oceano, como ocorre, por exemplo, em Copacabana e no Leblon.

O fenômeno da ressurgência é outra peculiaridade que interfere na costa. Durante o verão, na Região dos Lagos, as águas geladas das profundezas sobem para a superfície e os ventos vindos de Leste levam a correnteza fria para a capital. Mas não foi o que aconteceu em 2015. Segundo o vice-presidente da Câmara Comunitária da Barra da Tijuca, o oceanógrafo David Zee, neste ano, os ventos sopraram de outras direções.

– Neste último verão houve um fenômeno novo, porque não soprou muito vento de Leste, não teve muito afloramento das águas profundas. E sim mais ventos de Sul e Sudeste. Eles arrastaram as águas superficiais de alto mar de encontro ao litoral do Rio, trazendo essas águas roxas e limpas. E o litoral do Rio ficou com águas límpidas e quentes, o que não é comum nesta época do ano – destaca Zee.

O oceanógrafo ainda ressalta que muito precisa ser feito para despoluir partes do litoral, que foram fonte de riqueza durante muitos anos. No século XVII, a cidade aproveitava os recursos da Baía de Guanabara, onde as baleias eram numerosas entre junho e agosto. Para ele, no caso da Baía, o principal problema é a falta de continuidade nos projetos implantados pelos governantes.

– É preciso ter uma continuidade e uma estratégia única que todos têm que combinar e seguir. Liderança e a continuidade dela são os principais para a eficiência da recuperação da Baía de Guanabara. Não só trocar as metodologias, as tecnologias, mas também os governantes. Sempre há um recomeço de programa de despoluição a cada governo que se troca – alerta Zee.

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