Conflitos no Rio não devem ser banalizados pela mídia
25/09/2017 11:39
Helena Carmona

O alerta é de participantes do Encontro Mídia Livre, na PUC-Rio, como o jornalista Ricardo Boechat, a diretora da Anistia Internacional Jurema Werneck e o coordenador de Comunicação da ONG Repórteres Sem Fronteiras, Artur Romeu.

“A perniciosidade desse marketing deve ser denunciada”. A opinião incisiva da diretora da Anistia Internacional Jurema Werneck sintetizou uma visão comum entre os convidados do Encontro Mídia Livre, dia 13 de setembro, na PUC-Rio, sobre iniciativas como a recém-criada Editoria de Guerra do jornal Extra. Em resposta à questão levantada pelo estudante de Jornalismo Pietro Reis, Jurema, o jornalista e apresentador da Band Ricardo Boechat e o coordenador da ONG Repórteres Sem Fronteiras, Artur Romeu, convergiram quanto à necessidade de a violência ser tratada, pela imprensa e pelos cidadãos, com profundidade compatível às nuances e às complexidades envolvidas. Na opinião deles, a imprensa e, de uma forma geral, a mídia precisam evitar a banalização do conflito vivido em comunidades cariocas.

A violência na região revela, contudo, números e cenas bélicos, como os confrontos recentes na Rocinha, ocupada pelo Exército desde sexta-feira passada. O volume de homicídios dolosos, no Rio, aumentou 10,2% no ano (2.472 para 2.723, primeiro semestre). Reforçam a contabilidade de quase 280 mil mortes violentas intencionais registradas no país, entre 2011 e 2015, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – cerca de 30 mil mais que na Síria, há seis anos em guerra. Ainda conforme o 10° Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2016), a polícia do Rio é a que mais mata e a que mais morre: são registrados, no estado, quatro mil tiroteios entre policiais e criminosos por ano, 11 por dia, estima a Secretaria de Segurança.

Ao encontro desta escalada de violência, o Extra criou, em agosto, uma editoria de guerra para cobrir “tudo aquilo que foge ao padrão da normalidade civilizatória, e que só vemos no Rio”. Na avaliação dos  participantes da mesa Comunicação e Direitos Humanos, mediada pela professora e jornalista Lilian Saback, assessora de Comunicação da Reitoria, a iniciativa não deve, para “combater um mal maior”, desrespeitar direitos dos moradores de comunidades.

Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional. Foto: Isabella Lacerda

— Para além do marketing, a legitimação da matança e do uso indiscriminado das armas de fogo é bastante danosa à vida de determinadas pessoas. No contexto de guerra, direitos são tirados porque há um inimigo a ser combatido — ressaltou a diretora da Anistia Internacional, às dezenas de alunos de Comunicação que lotavam a sala 102-k, parte deles até de outras universidade, como UFRJ e Facha.

Lilian acrescentou que “[nesse contexto] os direitos de moradores do Jacarezinho, por exemplo, são tolhidos”. Para Boechat, ignora-se o fato de que a violência se concentra em áreas periféricas e banaliza seus danos para moradores de comunidades:

— É evidente que atribuir [aos conflitos] a dimensão de uma guerra é criar uma cultura das perdas de guerra. É o que se escuta quando morre uma criança na favela: “você tem que entender que estamos numa guerra”. Guerra nada, não tem guerra na Delfim Moreira, nem na rua em que eu moro, nem no Jardim Botânico” — opinou o âncora da Band News FM, sob olhares de aprovação do público do encontro organizado pelo coletivo Somos Todos Mídia para “debater o lado mais humano do jornalismo”.

Violência prejudica ativiaddes cotidianas

Concentrada tradicionalmente em áreas desfavorecidas e em negros, pobres, mulheres e jovens, a violência crônica do Brasil e do Rio impõe sequelas também ao ensino. Em 93 dos primeiros 100 dias letivos do ano aulas da rede municipal do Rio foram interrompidas por casos de violência, contabiliza a Secretaria de Educação. A estimativa é de que quase 130 mil crianças tenham sido afetadas. No dia 17 de setembro, cerca de 80% dos alunos do Projeto de Ensino Cultural e Educação Popular (PECEP), na Rocinha, deixaram de fazer o vestibular da Uerj por causa de um tiroteio. Boechat lembra que a violência constantemente interrompe as atividades cotidianas de moradores de comunidades cariocas:

— O maior problema da favela não são as drogas. Se eu tivesse um filho na favela, eu me preocuparia em saber se ele teria escola, se meu esgoto iria para uma estação de tratamento, se o ônibus iria chegar à minha porta, coisas essenciais para quem está querendo tocar a vida.

Uma aluna discordou: “A gente não tem como chegar ao ponto de ônibus, se o tráfico está ali trocando tiros entre eles mesmos. O problema é que a UPP recua, a polícia sai de dentro da favela, e a favela vai voltar a viver só pra ela, a gente vai voltar a ser uma bolha”.

Para Boechat, a discussão sobre o tráfico em si, e não apenas sobre as operações policiais, está "o suficiente" nos noticiários. Ele acredita, contudo, que a imprensa deveria ampliar o espaço para o debate sobre a repressão ao consumo de drogas:

Ricardo Boechat e Jefferson Barbosa (aluno da PUC). Foto: Isabella Lacerda

— Discutimos no noticiário a falta de políticas preventivas e de fronteiras, de ações de inteligência. Eu pelo menos discuto muito isso no programa, e observo grande participação de ouvintes. Mas é preciso dircutir mais uma questão de fundo, que a persistência, equivocada, na minha opinião, da repressão ao consumo de drogas. A experiência mais pronta e acabada disso se deu na lei seca americana, com o resultado que todos conhecemos, o fortalecimento das organizações criminosas nos EUA — comparou.

Coordenador da Repórteres sem Fronteiras: liberdade de expressão é “complicada” na América Latina

A abordagem profunda, plural, de temos complexos como a violência do Rio exige, entre outras condições, a segurança para o exercício do senso crítico, da liberdade de expressão. “Um ataque, uma agressão a um jornalista é um atentado à liberdade de expressão”, alerta o coordenador de Comunicação da ONG Repórteres Sem Fronteiras, Artur Romeu. 

— A liberdade de expressão é complicada para jornalistas na América Latina. Só neste ano, dez jornalistas foram assassinados no México, e é só a ponta do iceberg. Evidente que o assassinato é o pico da agressão contra jornalistas, mas, antes dele, vêm ataques menores, vem a censura.

Nos últimos cinco anos, mais de 20 jornalistas foram assassinados no Brasil. Em 2015, o país liderou o ranking da violência contra jornalistas na América Latina, com 11 mortos, de acordo com o Relatório Especial para Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) daquele ano.

Para Romeu, a violência começa em ações menores, previstas em lei, como processos por difamação que terminam em "indenizações abusivas". O Brasil ocupa a 103ª posição no Ranking da Liberdade de Imprensa em 2017 organizado pelos Repórteres Sem Fronteira com 180 países.

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