Publicada em: 11/09/2008 às 19:00
Especial


Cultura popular revivida no interior de Minas
Carlos Heitor Monteiro / Fotos: AnaAndrade

Acima, a fachada da Casa de Memória.
Embaixo, a exposição com as histórias do local e
Dona Guilhermina segurando a imagem de Sant'Ana
 

 

Cerca de dez horas de viagem de carro separam o Rio de Janeiro do município de Inhapim, no interior de Minas Gerais. A cidade, cujo nome homenageia um passarinho da região, tem sete mil habitantes e é cenário de uma rivalidade política histórica entre os Pica-pau (PMDB) e os Corta-güela (DEM). De Inhapim, são seis quilômetros, a maior parte em estrada de terra, até Córrego dos Januários, localidade com apenas 200 habitantes que tem sido palco de um fascinante renascimento cultural. O ponto máximo desta renovação foi a inauguração da Casa de Memória e Cultura de Córrego dos Januários, em 30 de agosto, com apoio do Departamento de Psicologia e da Vice-Reitoria Comunitária da PUC-Rio.

 

Tudo começou graças ao sonho de Maria de Lourdes Souza, escritora e aluna de Letras da PUC-Rio. Maria de Lourdes, mais conhecida como Toquinha, é nascida e criada no Córrego dos Januários, lugar que lhe serve como fonte de inspiração literária. A partir do ano 2000, ela passou a se preocupar cada vez mais com a sobrevivência da memória e da cultura de seu povo, que corriam o risco de se perder com o envelhecimento e morte dos moradores mais velhos. Outro elemento decisivo para desencadear um processo de ruptura no modo de vida local foi a chegada da luz elétrica, em 1984. Apesar de todos os benefícios, o advento da energia elétrica provocou mudanças que abalaram a convivência e a troca de experiências entre os habitantes do povoado.

 

Toda a angústia de Toquinha sensibilizou a psicóloga Denise Sampaio Gusmão, que, na época, era mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. “Meu primeiro contato com o Córrego foi por meio da escrita de Toquinha, que me impressionou muito”, diz Denise. Em abril de 2001, ela fez sua primeira viagem ao local, com o desafio de registrar as histórias e costumes que pareciam estar se perdendo. “Nossa chegada vinha sendo aguardada por todos com certa ansiedade e muita curiosidade. Afinal, eles ainda não tinham entendido muito bem o que os amigos de Toquinha, vindos do Rio de Janeiro, queriam tanto fazer ali”, comenta a pesquisadora.

           

Essa foi a primeira de muitas viagens e o início de um processo escavatório em busca de uma memória que, apesar de ameaçada, ainda permeava a vida dos habitantes locais. “Fomos ao encontro do passado sabendo que as lembranças só fazem sentido quando entram em diálogo com o presente e com os acontecimentos cotidianos”, explica Denise. A pesquisa incluiu também a realização de oficinas de fotografia e memória com os moradores do Córrego, com o intuito de criar um acervo de contos e imagens que registrassem a história do povoado. O impressionante é que Denise e Toquinha iniciaram o trabalho num momento crucial. “Muitas pessoas fundamentais morreram logo depois. Se a gente tivesse chegado dois anos mais tarde, esse trabalho não poderia ter sido feito”, conta Denise.

           

A pesquisa de Denise Gusmão resultou em sua dissertação de mestrado, intitulada Por uma estética da delicadeza: ressignificando contos e imagens nas roças de Minas. Ela concebe o conceito de delicadeza sob dois sentidos. “Um fala de uma percepção poética do mundo, revelada tantas vezes pela grafia do olhar de crianças e adultos do Córrego”, explica. “O outro nos leva ao cuidado e à humildade. O terreno da memória é delicado e, por isso, exige delicadeza da parte daquele que se aventura a escavá-lo”, completa. Atualmente, Denise trabalha em sua tese de doutorado, que dá prosseguimento à pesquisa no Córrego, sob orientação da professora Solange Jobim e Souza.

 

Em sentido horário: procissão mostra a força da fé
no Córrego; Denise com um sorriso de "missão
cumprida"; a cruz ornamentada pelos moradores do
local; Toquinha faz a inauguração da Casa

 

 

Oficina de Memória e Projeto Carta Para-ti

 

O escritor uruguaio Eduardo Galeano assim se expressou a respeito da memória: “Um refúgio? / Uma barriga? / Um abrigo para esconder-te quando a chuva te afoga, / ou o frio te corta, ou o vento te faz rodar? / Temos um esplêndido passado pela frente? / Para os navegantes com vontade de vento, a memória é um porto de partida.”

 

Durante o trabalho de campo no Córrego dos Januários, uma iniciativa essencial foi a Oficina de Memória, que propôs um diálogo entre gerações diferentes por meio do ato fotográfico. O projeto Carta Para-ti transformou em postais o material produzido pelos fotógrafos de primeira viagem do Córrego, com o objetivo de estabelecer uma rede de comunicação não só entre os moradores locais, mas também com pessoas de outros lugares cujas histórias compõem a enorme diversidade cultural brasileira. O projeto gráfico dos postais foi concebido por Luiza Kramer, aluna do Departamento de Artes e Design. da PUC-Rio.

           

Este projeto possibilitou que os “januários” saíssem de sua terra e interagissem com os participantes da Flipinha, a versão infantil da Festa Literária Internacional de Paraty; do Paiol de Histórias, projeto da Fundação Cultural Casa Lygia Bojunga em Petrópolis; e do PUC pela Paz. “Após a morte de vários membros mais velhos da comunidade, houve um momento de desvalorização muito forte, em que as pessoas do Córrego duvidaram da importância de preservar sua memória”, explica Denise. Segundo ela, essa saída foi essencial para a percepção de que as histórias deles importavam para outras pessoas. “Nesse momento, houve uma apropriação do valor e da riqueza do Córrego”, conclui.

 

Córrego ontem e hoje

 

Um dos aspectos mais interessantes do projeto é o envolvimento da comunidade durante todo o processo. Muitos percebiam que a convivência estava se tornando cada vez mais rara e que era importante resgatar os valores da região. “Antes da luz elétrica, o povo era mais unido. A turma se juntava sempre pra novena, pro forró... Hoje, o pessoal prefere ficar em casa vendo TV”, diz Adélia Pereira, moradora do Córrego. Dona Marlene de Souza Pereira, irmã de Toquinha, acrescenta: “A maneira de viver hoje é muito diferente – é uma vida cansada. A gente tinha tempo para conversar, para dar atenção uns aos outros, para sentar e ouvir uma história que durava horas. Tentei criar meus filhos assim, mas é muito difícil”.

           

Jupira José de Souza, professora de Língua Portuguesa, também se recorda da criação que recebeu de seus pais. “Nós fizemos curso superior, mas não temos a sabedoria que nossos pais tinham. Dentro da simplicidade, eles viveram bem e tranqüilos”, diz. Dona Guilhermina Pereira, uma das mais antigas residentes do povoado, se queixa de que, quando quer se lembrar de algo do passado, é difícil encontrar alguém que possa ajudar. “Há 50 anos, a gente saía para ajudar uma comadre na hora que fosse, e levava um tiçãozinho de fogo pra alumiar”, lembra. “A gente não tinha medo de nada, só de onça e cobra. Hoje tem a luz e a gente pode sair a qualquer hora da noite. Mas agora nós temos medo do bicho homem”, diz.

           

Entre os jovens também percebem-se sinais de entusiasmo. “Acho que conhecer a tradição serve para a gente ir além e descobrir coisas novas”, diz Rafael Adriano Silva, 15 anos. Jeanderson da Costa, 13 anos, prefere andar de bicicleta a ver TV. “Passar o tempo sozinho é esquisito. Prefiro ficar com meus amigos”, conta. Essas são algumas pistas de que o medo que dona Guilhermina sente pode dar lugar ao que disse o amazonense Thiago de Mello: “Fica decretado que o homem / não precisará nunca mais / duvidar do homem. / Que o homem confiará no homem / como a palmeira confia no vento, / como o vento confia no ar, / como o ar confia no campo azul do céu.”

 

Do sonho à realidade

 

Em seis anos de pesquisa, o desejo de construir uma casa de abrigo das memórias cresceu e tomou forma. Agora, a Casa de Memória e Cultura do Córrego dos Januários funciona na casa onde Toquinha e suas irmãs nasceram e cresceram. “Como nenhuma de nós mora aqui, achamos por bem abrir mão da casa para benefício da comunidade”, explica Toquinha. “No começo, achava que a preservação era um delírio meu. E hoje todos estão recebendo esse presente”, diz. Isso lembra outro trecho de Thiago de Mello: “Pois aqui está a minha vida. / Pronta para ser usada. / Vida sempre a serviço da vida. / Para servir ao que vale / a pena e o preço do amor”.

           

No dia da inauguração, houve uma procissão, seguida de missa, em que os moradores entoaram hinos tradicionais. A Casa de Memória apresentava uma exposição com estandartes de lona de algodão que contavam uma parte significativa da História do Córrego. A produção e montagem ficaram por conta de Luis Vicente Barros, professor de Design da PUC-Rio, e da designer Marcela Carvalho. A proposta era manter o formato original da casa. “Tentamos aproveitar ao máximo as tecnologias e materiais do Córrego, como o bambu, o coité e o barro branco”, explica Vicente.

           

Para Denise, o espaço não deve ser um lugar somente para abrigar o acervo , mas, sobretudo, para ser um local de encontro e celebração. A julgar pela opinião dos moradores do Córrego, a preservação do Espaço está garantida. “Vai ser muito difícil alguém entrar aqui e não sair com outro sentido. Tudo aqui dentro só traz coisa boa”, afirma dona Marlene. “A Casa é a fonte de riqueza da comunidade”, prossegue a catequista Janaína Assis. O jovem Jardel Frias resume: “Se a gente não souber a história de onde a gente vive, esse lugar pode ser um tipo de lugar qualquer”. A Casa de Memória também abriga o Clubinho de Leitura, que reúne as crianças do povoado todos os sábados para incentivar a formação de leitores.

           

Mário Quintana, no poema Operação alma, escreveu: “Uma curva do caminho, / Anônima, / Torna-se às vezes a maior recordação de toda uma volta ao mundo!” O povoado de Córrego dos Januários é essa curva anônima, perdida no interior das Gerais, com uma história comovente e riquíssima. Impossível não se apropriar das palavras de Toquinha:

           

“As últimas despedidas, as inevitáveis lágrimas. O ônibus sai e lá, entre as montanhas, vai ficando um pedacinho de mim.

           

Sinto, então, que cresceu a minha coleção de emoções”.

Edição 205


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