Justiça Restaurativa e a luta contra o ciclo de violência
30/07/2021 14:45
Carolina Smolentzov

Implantado no Brasil a partir de 2005, modelo é inspirado em prática exercida por povos indígenas

Dados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) registram que a população prisional aumenta cerca de 7,5% ao ano, e os índices de reincidência criminal chegam a 80%. Para profissionais da área, o caminho viável é repensar e renovar o sistema, que é assolado por crises e falhas estruturais. Atualmente, a Justiça Restaurativa desponta como uma possibilidade para a pacificação das relações humanas, ao afastar-se da lógica punitiva e buscar a origem da transgressão para reparar os danos no tecido social.

Baseado na prática exercida por povos indígenas ao redor do mundo, este modelo já é aplicado no Ocidente desde a década de 1970 e passou a ser adotado no Brasil em 2005. As sessões normalmente promovem um encontro entre a vítima, o ofensor e a comunidade, e são pautadas no diálogo, na humanização e na criatividade. Professora de Comunicação e Direito da PUC-Rio, Leise Taveira também atua como advogada e afirma que o ciclo de violência presente no Brasil é sintoma de uma sociedade doente. Leise acredita que, neste contexto, a Justiça Restaurativa é um caminho na tentativa de ordenar as falhas do judiciário e a desigualdade existente no país.

- O nosso sistema penal não discute responsabilidade, imputa culpa. Por isso, a Justiça Restaurativa é um modo de educação que vai para além da lei e do direito. Ela nos leva a nossa construção enquanto seres humanos desamparados e vulneráveis.

Professora Leise Taveira (Foto: Gabriela Doria)

Em 2016, a Justiça Restaurativa tornou-se política pública nacional. Atualmente, existem 44 programas, projetos e ações, distribuídos em 25 Tribunais de Justiça do país. Um dos pioneiros é o programa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), o Núcleo Permanente de Justiça Restaurativa (NUJURES). A coordenadora técnica do Núcleo, Nadine Neves Faria, explica que a prática restaurativa ocorre em conjunto com o processo criminal e pode ser aplicada em qualquer fase, mas na maioria das vezes é feita antes do julgamento.

O primeiro passo é entrar em contato com a vítima e realizar uma escuta ativa. Todo o processo é voluntário e prevê o livre consentimento das partes, que têm o direito de desistir a qualquer momento. Inicialmente, são organizados pré-encontros individuais, para orientar e explicar o processo aos envolvidos. Depois, a sessão é marcada e coloca frente a frente aqueles que foram afetados pela ofensa. Atualmente, por causa da pandemia, as práticas estão sendo feitas on-line. 

- Nossa preocupação maior é blindar a vítima para que ela não seja re-vitimizada. É muito importante garantir um encontro tranquilo, respeitando os princípios restaurativos - explica a coordenadora.

A metodologia das reuniões varia, mas elas duram em média duas horas e podem gerar um acordo, fruto do consenso entre as partes. Em uma das técnicas, chamada de Círculos de Construção de Paz, os participantes sentam-se em círculo e são estimulados a compartilhar as histórias de vida e se reconectar com valores humanos.

Estes acordos podem envolver pedidos públicos de desculpas, prestação de serviço à comunidade e pagamento de cestas básicas. Segundo Nadine, o leque de possibilidades é grande, pois depende do sentimento e da necessidade da vítima e da aceitação do ofensor. No Brasil, predomina o trabalho em infrações como ameaça, lesão corporal leve, dano patrimonial, injúria, entre outros. Nestes casos, os acordos gerados permitem arquivamento do processo. Mas a Justiça Restaurativa também é aplicada em crimes de médio e grave potencial ofensivo – embora com maiores restrições legais, como a impossibilidade de remover a pena descrita em lei.

Além de diminuir a burocracia e a reincidência criminal, um estudo de sete anos financiado pelo governo do Reino Unido mostrou que o programa de Justiça Restaurativa também economizaria um total de quase £275 milhões para a sociedade, o que equivale a mais de R$2 bilhões. A pesquisa verificou uma satisfação de 85% das vítimas que participaram de sessões restaurativas. Isto porque o foco da prática é devolver a elas o protagonismo do sistema penal, a partir do empoderamento e da voz ativa. No atual sistema jurídico, este grupo ocupa um papel periférico e alienado, sem qualquer assistência psicológica, financeira ou social. 

De acordo com a professora Leise, as classes subalternas sempre foram sistematicamente submetidas ao cárcere, e esta experiência propicia uma perda da dignidade humana. Ao mesmo tempo, ela afasta o infrator do vínculo social, e estimula a tônica da vingança que existe no discurso corrente.

- A Justiça Restaurativa pode se tornar um marco civilizatório na nossa sociedade. Estamos vivendo a era da coisificação, e o embrutecimento do ser humano é algo muito poderoso. A sociedade pode não estar preparada, mas o fato de não estarmos preparados significa que precisamos insistir - observa. 

Mediação de Conflitos

Uma iniciativa idealizada em 2007 pelo Departamento de Direito da PUC-Rio une também professores do Departamento de Psicologia para lidar com conflitos sob uma perspectiva conciliatória. Trata-se do Grupo Interdisciplinar de Mediação de Conflitos (GIMEC). Uma das coordenadoras do programa, a professora Samantha Pelajo acredita que a troca é fundamental e que todas as experiências se somam. Entre elas, destacam-se a da especialista em Justiça Restaurativa, Célia Passos, e a da advogada criminalista Luísa Tavares. Ex-aluna do departamento de Direito, ela fez o trabalho final do curso sobre o assunto e posteriormente o transformou em um livro sobre o sistema penal. As três – que dividem um histórico tanto profissional quanto pessoal – conversam sobre percepções e questionamentos acerca dos princípios restaurativos.

Professora Samantha Pelajo (Foto: Isabella Lacerda)

Para Célia, existe convergência entre a mediação, realizada na PUC-Rio, e a Justiça Restaurativa, já que ambas buscam entendimento, pacificação e construção colaborativa de soluções. O segundo modelo, no entanto, diz respeito a uma ampliação de repertório para atender questões de dano e infração: ele começa na área penal, mas extrapola.

- Temos uma característica muito peculiar no Brasil que é esta violência sistêmica, em que você alterna seu lugar entre vítima e ofensor sem nem perceber uma ou outra. Estamos tão moldados e forjados nesta situação de violência que algumas pessoas nem se percebem como vítimas; elas precisam refletir sobre este estado para perceber que pode haver algo diferente, uma contenção destas questões.

Luísa acrescenta ainda o caráter preventivo da prática restaurativa, uma vez que ela é eficiente em identificar e sanar disfuncionalidades sociais, por meio da mobilização coletiva. Ela começou a questionar a realidade do sistema carcerário brasileiro ao observar o percentual grande de jovens pretos e periféricos que ficam aprisionados em condições degradantes. Um processo que, segundo a advogada, começa nas ruas.

- Quando vemos operações em favelas e execuções sendo aplaudidas pela sociedade, vemos que existe um clamor público por punição no sentido de vingança e sofrimento. Isto não conjuga com a Justiça Restaurativa, ela não fala de punição e coerção. No meu entender, ela não deve ser vista como um remédio, mas de forma autônoma, como modo de vida e valores compartilhados.

Por isso, este modelo pode ser muito eficaz no processo de ressocialização do ofensor, ao possibilitar que ele tome responsabilidade e que a sociedade fique sensibilizada com a situação de conflito. Assim, a comunidade passa a enxergar tanto a vítima como alguém que necessita de apoio quanto o infrator como alguém que precisa de incentivo para mudar a conduta. Segundo dados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, jovens infratores que passam por encontros restaurativos têm taxas de reincidência 1/3 mais baixas quando comparado ao sistema tradicional, e os que reincidem costumam praticar crimes menos graves. Célia considera que estes dados refletem a infinitude de possibilidades para além do nosso familiar sistema punitivo. Para ela, porém, entre a punição e a impunidade há uma gama de matizes, cores e possibilidades que, por serem desconhecidas, são rejeitadas.

É por isso que a Justiça Restaurativa, muito além de uma simples prática legal, propõe uma mudança de paradigma. Ela abarca um olhar crítico para todas as relações pessoais, sociais e institucionais, e uma ponderação sobre a sustentabilidade dos sistemas. Para Nadine, o primeiro passo é estimular esses questionamentos.

- O que a gente tem hoje funciona? A violência funciona? O sistema penal funciona? O que está faltando? A Justiça Restaurativa traz esta reflexão: todos nós somos corresponsáveis. Isto é cultural. E a mudança começa na gente. A ideia inicial é se observar, observar as pessoas ao seu redor, e propagar esta cultura de paz. 

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