Na cola dos tentáculos
23/06/2022 16:53
Rafael Serfaty

Reportagens sobre caso Watergate permanecem como referência de um bom jornalismo investigativo

Em um país democrático, a imprensa forma opinião e supervisiona processos, a ponto de ajudar até na queda de governos. Foi o que ocorreu nos Estados Unidos, há 50 anos, com o caso Watergate: escândalo político que levou à renúncia do presidente Richard Nixon. O impacto permanece expressivo na atualidade, não só na política como no jornalismo e no cinema.

Em 17 de junho de 1972, cinco homens foram presos por instalar equipamentos de espionagem e fotografar documentos no complexo Watergate, sede do Partido Democrata. Eles se identificaram como anticomunistas, e a prisão aconteceu durante a campanha eleitoral que levou Richard Nixon, do Partido Republicano, ao poder.

Os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, do jornal The Washington Post, começaram a desconfiar de ligações entre o caso Watergate e a Casa Branca. A dupla identificou o nome de um dos homens presos na folha de pagamento do comitê que trabalhava na eleição do presidente. Descobriram que outro detido havia recebido um depósito de US$ 25 mil. Por meio de uma série de reportagens, os jornalistas revelaram que Nixon utilizou dinheiro não declarado para espionar os adversários e favorecer a sua campanha.

Guerra e poder

Os Estados Unidos passavam por um crescimento dos movimentos de contracultura, como os hippies, e o movimento pelos direitos civis dos afro-americanos. O professor Leonardo Carvalho, do Departamento de História, aponta como o contexto histórico influenciou as ações de Nixon.

– É um momento de superação de uma crise de autoridade. Há várias mudanças demográficas e econômicas da geopolítica. Há um processo de maior aquisição de direitos de grupos sociais, como os negros, mas que depois vai catapultar uma série de outras minorias. Esses movimentos esbarravam na falta de eficácia das administrações americanas em ampliar a representatividade, melhorar a qualidade de vida dos negros. Não era um cenário de paz. Nixon, de certa forma, era um dos que representava a bandeira da lei e da ordem.

A Guerra do Vietnã foi outra integrante da confusão. Em 1971, cerca de 61% da população estadunidense era contrária ao conflito. Cerca de 90 mil jovens haviam desertado no mesmo ano. Especialista em História Contemporânea, Carvalho alega que Nixon assumiu o compromisso de retirar as tropas americanas da batalha, mas não o fez. Segundo ele, a opinião pública estava cada vez mais cansada com a continuidade da guerra, que atingia a população civil. Permanecer no poder seria fundamental para estender o embate, alimentado por um recrutamento seletivo.

– Nixon era racista, negros e latinos eram muito mais recrutados do que jovens brancos de classe média, protestantes. Ele representava valores tidos como patrióticos pelo conservadorismo americano. Nesse sentido, parecia chegar ao poder com capital político grande. A reeleição seria uma legitimação dessa vitória ideológica. Ganhar sem maiores riscos era uma necessidade do governo americano.

Na trilha do ‘Garganta’

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Carvalho aponta que Nixon chegou ao poder pela democracia, mas não teria nenhuma desfaçatez em esmagá-la se fosse conveniente. Segundo ele, havia um operação tentacular dentro do sistema político americano, e a aposta do presidente na impunidade foi gravíssima. O professor reforça como a imprensa teve papel fundamental na apuração dos fatos.

– Jornalismo prudente, correto, com muito fôlego de investigação. Envolveu horas de chamadas telefônicas, anotações, deslocamento até endereços. Foi um risco calculado, o Post (jornal Washington Post) esperava ter as provas mais concretas possíveis. Não tinha medo de ser acusado de parcial. Os vazamentos também foram importantes, é a primeira vez que você fala de um grande informante privilegiado, o Garganta Profunda.

A identidade de Garganta Profunda só foi revelada em 2005: William Mark Felt (1913-2008), vice-presidente do FBI durante o governo Nixon. Felt adotou este codinome em referência ao filme pornô Deep Throat (1972), famoso na época. Garganta Profunda sugeriu a Bob Woodward que ele e Carl Bernstein rastreassem a origem do depósito na conta de um dos invasores do escritório democrata, assim surgiu a primeira ligação da invasão com os republicanos. Para Carvalho, Garganta Profunda não forneceu informações concretas, ele direcionou os repórteres.

– Felt dizia que tal estratégia não era correta, que outra era mais confiável. Evitava mencionar nomes de pessoas, ‘confirmava silenciando’. Quis evitar o papel de delator, era mais uma bússola.

Nixon tentou obstruir as investigações de qualquer jeito. De acordo com Carvalho, o presidente controlava os procuradores, tinha contato com os investigadores do FBI que estavam junto aos investigadores do processo judicial. Havia homens que defendiam a sua posição em todas as etapa do processo. Mesmo assim, os esforços foram em vão.

Os envolvidos com a invasão foram julgados em janeiro de 1973; em fevereiro, o Senado abriu um inquérito; em abril, três assessores de Nixon renunciaram a seus cargos. Em julho, foram descobertas gravações da Casa Branca, que complicaram a situação do presidente. O caso chegou na Suprema Corte e o impeachment seria inevitável. A solução foi Nixon renunciar, e Carvalho afirma que ele nunca mais ocupou nenhum cargo como agente político.

– Ao perceber que as evidências todas estavam sendo reveladas, prepararam uma saída estratégica que não comprometesse Nixon. Não é casual que Ford (Gerald Ford, vice de Nixon que o sucedeu) tenha dado o indulto ao presidente menos de um ano depois de assumir. Ele se compromete mais depois da renúncia e do indulto. Muitos americanos esperavam que Nixon assumisse a responsabilidade civil e pedisse perdão, mas não acontece.

Os detetives da imprensa

Embora tenha marcado a história americana pela corrupção e a posterior queda do governo, o caso Watergate deixou valiosas lições para o jornalismo. De acordo com professor Arthur Dapieve, do Departamento de Comunicação, a lição principal é de que nem o homem mais poderoso do mundo pode tudo.

– A imprensa tem a obrigação de filtrar assuntos relevantes relativos aos Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e levar para a população. Se ele estiver fazendo algo ilegal, é dever não só do jornalismo, mas da justiça, da sociedade como um todo apontar essa ilegalidade. A pessoa deve responder à mesma lei que todo e qualquer cidadão. Quando acharem que jornalismo não serve para nada, lembrem-se de Bob Woodward e Carl Bernstein.

O professor, entretanto, ressalta que as reportagens não são feitas apenas por quem assina. O Washington Post já tinha uma tradição de jornalismo investigativo, e, segundo ele, para matérias deste calibre as altas instâncias do veículo precisam estar de acordo, além de os textos passarem por um rigoroso processo de revisão. Dapieve alega que o jornal confiou no trabalho dos repórteres e deu o suporte necessário para a missão.

– Eles já eram profissionais respeitados dentro do Post. Jornalistas iniciantes não seriam escalados para esse trabalho. Fizeram uma investigação num tempo em que não havia internet, era preciso fazer ligação de escada, consultar catálogo telefônico para cruzar nomes e entender o que aquilo significava. Era um trabalho mais braçal do que seria hoje em dia.

No Brasil, esse tipo de investigação é igualmente complicado. Há 50 anos, o país estava sob um regime militar, em que a imprensa era censurada pelo Estado. Para o professor, não era interessante para a ditadura mostrar como o jornalismo poderia derrubar governos. Isto resultou numa cobertura apenas protocolar do caso Watergate no Brasil. Mas hoje, mesmo numa democracia e com o advento da internet, Dapieve aponta que os jornalistas brasileiros vivem uma realidade pior do que a americana.

– O Brasil é um dos países do mundo onde mais se matam jornalistas. No interior, coronéis mandam nas cidades. Tem uma questão de perigo muito maior do que nos Estados Unidos. Lá, o aparato policial é mais eficiente. Há corrupção, mas ela é mais aceita como um fato da realidade aqui, até no discurso.

Watergate nas telas

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O escândalo teve enorme impacto nos anos 70, tanto que Hollywood não tardou em adaptar a história para o cinema com o longa-metragem Todos os Homens do Presidente (1976). Dirigido por Alan J. Pakula, o filme teve o roteiro baseado no livro homônimo de Bob Woodward e Carl Bernstein, lançado em 1974. Foi um sucesso estrondoso. Todos os Homens do Presidente arrecadou US$70,6 milhões e venceu quatro Oscars, como Melhor Ator Coadjuvante (Jason Robards, pelo papel do editor-executivo Ben Bradlee).

Dapieve aponta que o filme – estrelado por Robert Redford e Dustin Hoffman - foi lançado no calor dos acontecimentos. Para ele, isto é uma possibilidade quase exclusiva do cinema americano – ter uma ideia hoje e, com a produção certa, um longa estrear no final do ano. O professor observa que no Brasil, até se ter uma ideia e conseguir captar recursos, já se passaram pelo menos três anos do acontecido.

– Foi um modo de ver algo diferente da televisão brasileira, com conteúdo fracionado nos jornais. Tudo com as liberdades dramáticas que o cinema pode tomar, tornando aquilo mais thriller do que deve ter sido. Imagino que boa parte do trabalho tenha sido muito enfadonho, mas isto era necessário para chegar à parte excitante da apuração.

Dapieve afirma que Todos os Homens do Presidente colocou o sarrafo no alto: mostrou que produções sobre jornalismo não deveriam ser romantizadas – não são super-heróis que podem tudo. Ele alega que antes havia muitos filmes em que o jornalista era um mau caráter, como o noir A Montanha dos Sete Abutres (1951), de Billy Wilder. Segundo o professor, houve uma virada de chave na imagem da profissão.

– O jornalista deixou de ser um escroque e virou o mocinho da história. A partir daí, houve vários filmes com a mesma pegada, como The Post e Spotlight. Claro que nem todo jornalista do cinema americano é bonzinho, mas Todos os Homens do Presidente levantou a possibilidade de nem todos os profissionais serem uns cretinos interesseiros. Eles também podem ser cidadãos devotados a trazer à tona uma verdade incômoda.

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