Após 50 anos do golpe civil-militar brasileiro, em que a censura era um fator comum no país, o conceito de liberdade de expressão ainda passa por um processo de amadurecimento na sociedade. O atentado ao jornal satírico francês Charlie Hebdo trouxe à tona o debate sobre os possíveis limites e as contradições desta liberdade. Para discutir como isso influencia na legislação e no jornalismo, o DCE reuniu, no dia 30 de março, professores do Departamento de Direito e de Comunicação Social para refletir sobre o tema.
Os professores Antonio Pele e Fabio Leite, do Departamento de Direito, abordaram o assunto sob uma visão política e jurídica, enquanto os professores Leise Taveira e Claudio Bojunga, do Departamento de Comunicação Social, relacionaram a liberdade de expressão com o jornalismo. Para os palestrantes, a liberdade de expressão deve ser um direito defendido com muito cuidado, por ser uma das bases da democracia e dos direitos humanos. Eles, entretanto, assinalaram que o conceito é bastante vago e deixa espaço para muitas contradições.
Fabio Leite, que pesquisa sobre o tema, disse que as pessoas têm uma ideia equivocada de que a liberdade de expressão permite a qualquer um dizer o que quiser, desde que assuma as consequências disso. Ele argumenta que essa responsabilidade normalmente vem em forma de processos ou multas pelo que foi dito. Assim, as pessoas que exercem o direito de liberdade de expressão - e são punidas - acabam se autocensurando, e deixam de opinar para não sofrer uma penalização.
- Isso gera o que nos Estados Unidos se chama de chilling effect, o efeito de resfriamento no debate público, que resulta na autocensura. Se eu critico um presidente, ou um ministro, e depois pago por isso, eu vou me censurar. O Brasil é um país que, quando envolve a liberdade de expressão, tem três particularidades. As autoridades públicas processam, normalmente ganham, e ganham muito. Essa peculiaridade não é discutida, então parece que está tudo bem – argumentou.
Para Leite, a liberdade de expressão tem a responsabilidade de proteger o discurso, sobretudo aqueles que provocam e causam choque.
- A liberdade de expressão é importante justamente para aquelas ideias que chocam, aquelas ideias que ofendem. Ela não é importante para assegurar o discurso inofensivo. Ninguém precisa de liberdade de expressão para elogiar, mas precisa da liberdade para se opor, dizer alguma coisa chocante e polêmica. Liberdade para as ideias que odiamos, essa é a essência da liberdade de expressão – disse o professor.
Por outro lado, o professor Antonio Pele afirmou que devem existir limites. Segundo ele, alguns estão explícitos na lei, como discursos racistas, homofóbicos ou injuriosos. Pele tratou dos limites desta lei de forma simples: a liberdade de um tem como limite a liberdade do outro. Esse direito pode ser utilizado para criticar, mas não para ofender. Ele usou o exemplo do atentado ao Charlie Hebdo para assinalar que o sagrado não deveria ser objeto de humor por ter uma grande capacidade de ofensa. Mas, explicou, no âmbito jurídico, um fato ofensivo não deve se tornar um fato proibido.
De acordo com o professor, a jurisdição deve proteger a liberdade de expressão mesmo quando alguém é ofendido, como no caso do jornal francês, em que o tribunal considerou não haver insulto odioso, apesar do caráter ofensivo das matérias que retratavam Maomé. Os dois professores de Direito reiteraram a importância do questionamento e da crítica como parte da liberdade de expressão e essenciais para a democracia.
Já na área da comunicação, o jornalista lida cotidianamente com estes limites e desafios. Segundo a professora Leise Taveira, embora não haja mais a censura de um governo militar, o jornalista se confronta com diversos obstáculos que colocam em pauta o que é a liberdade de expressão. Ela enumerou, como obstáculos ao exercício da profissão, o monopólio das empresas de comunicação no mercado, a autocensura nas redações de jornais e a responsabilidade pela apuração das informações. A professora acredita que é preciso discutir a regulamentação dos meios de comunicação na sociedade e buscar alternativas que não passem pelo jornalismo corporativista, isto é, dos interesses dos empresários.
- Essas coisas fazem parte do dia a dia do jornalista. E a liberdade de expressão, no jornalismo, é uma disputa diária das empresas de comunicação que se concentram nas mãos de poucos. Por isso, é necessário debater a regulamentação dos meios de comunicação. A imprensa é livre para quem? Como isso se manifesta diariamente? O jornalismo tem um poder de influência que não podemos duvidar – ressaltou Leise.
O professor Claudio Bojunga afirmou que a história não é uma linha horizontal. O que a constitui são os conflitos, e para ter um olhar sensível a esses conflitos e aos casos de intolerância à liberdade de expressão na Europa, é preciso analisar o contexto histórico.
Toda a evolução da tolerância é histórica. O pensar diferente e o ser diferente foram direitos conquistados arduamente. As grandes revoluções no mundo vieram com essa pauta e nós a desenvolvemos até hoje – enfatizou o professor, que foi repórter e correspondente internacional no Oriente Médio.