Especialistas: gestão é o remédio para Saúde do Rio sair do CTI
23/06/2016 15:54
Cecília Bueno e Mariana Casagrande. Fotos: Thayana Pelluso

Professores da PUC-Rio apontam também caminhos judiciais para a recuperação de serviços em unidades públicas estaduais

Arte: Mariana Salles
A preocupação internacional com os surtos de zika e com o nosso sistema público de Saúde levou o governo federal a anunciar reforços à assistência de turistas nos Jogos Olímpicos, que começam em 5 de agosto. Estão programadas a contratação temporária de 2,5 mil profissionais da área e a oferta de 130 leitos nos hospitais federais e institutos do Rio. Também serão adquiridas 146 ambulâncias que, passada a Olimpíada, renovarão frotas de outras regiões do país. Os novos veículos consumaram R$ 42 milhões do Ministério da Saúde. Restringe-se ainda à Rio 2016, especificamente à segurança nos Jogos, o socorro de R$ 2,9 bilhões liberados semana passada pela União. Estes reforços olímpicos contrastam com deficiências crônicas agravadas pela estiagem nos cofres estaduais. Refletida em sucessivos atrasos nos salários de médicos, professores e outras categorias essenciais ao serviço público, a crise materializa-se em dramas renitentes e cotidianos, como intermináveis filas para atendimentos e tratamentos médicos.

Na avaliação de Roberto Lourenço, professor da Escola Médica da PUC-Rio e do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), o rombo estadual em torno de R$ 20 bilhões “pode ser justificado por uma gestão corrupta e incompetente, pelo Estado dependente dos royalties do petróleo e até pela crise internacional”. Os efeitos em hospitais públicos são previsíveis: desfalques de mão de obra, equipamentos, estrutura. Apesar de avanços como as novas das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), os serviços de Saúde do Rio frequentemente desafiam a paciência, a resistência e mesmo a fé de abnegados pacientes, cuja perspectiva de atendimento patina sob o fantasma dos cortes na área. Do total arrecadado pelo governo do Rio entre janeiro e abril deste ano 2016 – pouco mais de R$ 11 bilhões –, R$ 1,4 bilhão deveria ter sido destinado ao setor de Saúde. No entanto, foram encaminhados só R$ 745 milhões. O retrato do torniquete financeiro revela-se alarmante: enfermarias lotadas, aparelhos sucateados, falta de materiais, atraso de salários, higiene precária, greves.

Rosimar da Silva, de 46 anos, testemunha o agravamento da crise. Ela faz pré-natal pela quarta vez no Pedro Ernesto, da Uerj e percebe uma “grande diferença” em relação a anos anteriores: – Piorou muito. A higiene está precária. Apesar de a maternidade e o pré-natal serem limpos, os banheiros de fora estão sujos. Lamento muito essa crise, pois aqui os médicos e os enfermeiros abraçam mesmo a gestante e os bebês. De pires na mão, hospitais públicos amargam no dia a dia os efeitos da desidratação financeira. Os recursos para o setor foram reduzidos em 7,6% neste ano. Com dívida de R$ 1,4 bilhão, a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro recebeu apenas R$ 350 milhões dos R$ 600 milhões que deveriam ter entrado na conta nos três primeiros meses do ano. Sem coelhos na cartola, a administração pública reduziu de R$ 254 milhões para R$170 milhões a verba destinada à manutenção das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e hospitais.

Foto: Thayana Pelluso

Enquanto pacientes e profissionais da área sonham com dias melhores, analistas acreditam que as dificuldades crônicas, aguçadas pelo déficit público, derivam tanto da falta de recursos quanto da forma de empregá-los. Na comparação com os demais integrantes dos Brics (Índia, Rússia, China e África do Sul), o Brasil é o que mais investe em Saúde: repassa o equivalente a 4,7% do PIB (Produto Interno Bruto, soma dos bens e serviços produzidos no país). No entanto, está longe dos percentuais entre 7,6% e 9% do PIB direcionados por países como Suíça, França e Reino Unido. Em valores per capita, a Suíça investe, aproximadamente, R$ 9,2 mil na Saúde, contra cerca de R$ 1 mil do Brasil.

Num levantamento feito há dois anos pela agência Bloomberg, especializada em economia, o quadro se mostra ainda menos animador: o Brasil ocupa a lanterna dos investimentos em Saúde empreendidos por 48 países com mais de cinco milhões de habitantes, PIB per capita superior a US$ 5 mil e expectativa de vida superior a 70 anos. Números que, infelizmente, se estampam na batalha cotidiana de pacientes, médicos, enfermeiros. Hospitais universitários: emblemas da crise Um dos hospitais fluminenses que mais sofrem com a crise financeira é o Pedro Ernesto (Hupe). Em fevereiro, o diretor do hospital, Edmar Santos, disse que precisaria de R$ 4,5 milhões para retomar todas as atividades na instituição – atualmente, apenas 200 dos 500 leitos estão funcionando. A dívida em torno de R$ 40 milhões impõe o risco até fechamento integral da unidade. Roberto Lourenço lembra que as dificuldades afetam não só atendimento aos pacientes, mas outras funções essenciais, como o financiamento a pesquisas acadêmicas e a bolsa dos estudantes:

– É importante distinguir sistema estadual e sistema universitário dentro da máquina pública. O hospital universitário não tem como objetivo apenas o atendimento aos pacientes, embora seja parte substancial da instituição, muito menos ao lucro. É essencial também à formação de conhecimento científico e de pesquisas – ressalta o professor do Pedro Ernesto e da Escola Médica da PUC-Rio. Ele acrescenta: – O problema atual da falta de pagamento do governo, que representa a maior crise da história do hospital, é a dificuldade de financiamento desses programas de formação profissional, além da diminuição obrigatória na demanda de pacientes.

 

Foto: Thayana Pelluso

A estudante Ingrid Vieira, residente em enfermagem, conta que a bolsa recebida para trabalhar no hospital é a única fonte de renda no Rio: “Dependo desse dinheiro para estudar, me alimentar e pagar o transporte. Com o atraso das bolsas, e eu e outros estudantes estamos vivendo um período muito crítico”, desabafa. O auxílio referente ao mês de janeiro só foi entregue em março e o de fevereiro será repassado em julho ou agosto.

– Fizemos greve, porque 30% dos residentes não tinham condições de vir trabalhar. Além disso, o hospital está carente de materiais e leitos. Como vamos trabalhar? Em alguns dias faltaram luva estéril, gás estéril, seringas, fraldas. Por isso, vamos à Alerj (Assembleia Legislativa do Rio) lutar pelos nossos direitos. O governo pede compreensão, mas os bancos e as contas não têm compreensão – aflige-se Ingrid.

Outro sinal da crise está estampado nos corredores, cujos lapsos de limpeza expõem as dificuldades associadas aos funcionários terceirizados, às voltas também com atrasos de salários. Para Rosimar, tais precariedades contrastam com a qualidade no atendimento médico:

– Apesar da crise, médicos e os enfermeiros tentam manter o padrão do atendimento. Mas o burburinho sobre um possível fechamento do hospital deixa todos muito preocupados – observa a gestante.

Elenice Ribeiro Barbosa, de 45 anos, sofre não só com deficiências hospitalares, mas com o acesso difícil a remédios. Portadora de poliangeíte com granulomatose (Doença de Wegener) e diagnosticada com câncer em 1998, ela precisa de medicamentos complexos, como microfonato de mofetina, para controlar a doença em estágio crítico. Já passou por três cirurgias para a retirada de tumores nos olhos, mas o câncer retorna. Desde outubro, Elenice luta para conseguir rituxonato e, assim, receber a infusão necessária ao tratamento. Como não pode pagar R$ 20 mil pelo remédio, recorreu à Justiça:

 

Elenice Barbosa Foto: Thayana Pelluso
– Só depois de quatro meses consegui a medicação. Como sentia muitas dores, pedi a um vizinho para buscá-lo. Ao retirar o medicamento, ele assinou o papel que apontava a necessidade colocar o remédio num isopor. Jamais haviam me alertado sobre isso. A informação acabou ignorada pelo meu vizinho, que mal sabe ler. Ele pegou a caixa e me entregou em um saco plástico. Agora, não posso tomar a medicação, porque a vacina tinha que ter sido mantida no gelo. O que vou fazer com isso daqui? Vou botar R$ 20 mil no lixo. Vou jogar fora minha saúde – desespera-se.

O caso ilustra, para Elenice, um dos descasos recorrentes do poder público com a Saúde. A paciente lamenta a permissão de saída do remédio sem o isopor. A Secretaria estadual de Saúde informa que, apesar do termo de entrega condicioná-la à apresentação de recipiente próprio, a administração pública não se responsabiliza pelo erro. Elenice lamenta, com igual desânimo, ter de deixar o bairro onde mora, Guadalupe, atrás de tratamento e remédios. Ela está entre os milhares de moradores da periferia fluminense que, por precariedade dos serviços de Saúde nas respectivas regiões, incham as unidades da capital. "Tenho de pegar ônibus interestadual ou trem para chegar até aqui, porque a área onde moro não cobre a minha doença", justifica.

Ela espera agora por uma doação do remédio que os médicos estão lutando para conseguir. Espera também por leitos. Encontra, pelo menos, a solidariedade de profissionais da área com os quais, por conta da grave doença, passou a conviver semanalmente nos últimos anos:

– A gente vê no desespero da médica que ela não tem o que fazer. Ela olha pra mim e diz: “E agora, o que vou fazer com você?”. Dá até um pouco de conforto saber que alguém se preocupa. Mas ela não tem o que fazer comigo. Às vezes, preciso ser internada. Mas há leito (disponível)? Não, não há. Então tenho que voltar para casa. Paciente do hospital há quase 20 anos, Elenice acompanha, ou melhor, vive as oscilações dos serviços prestados. Diz que, com o agravamento da crise, o atendimento ficou “mais escasso”. Assim como Rosimar, reclama da limpeza e da higiene: “Nem nos banheiros tem higienização”, constata. Para Lourenço, a recuperação deste e de outros hospitais públicos depende, sobretudo, de “vontade política”. Ele confia na capacidade de mobilização do movimento Resiste Hupe, que reúne não só funcionários do Pedro Ernesto, mas estudantes, pacientes e moradores do Rio.

– O Movimento entregou ao governador (licenciado) Pezão um abaixo-assinado com 90 mil assinaturas que, até agora, não foi contemplado. Os integrantes do movimento também compareceram a sessões públicas da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). O renascimento do Pedro Ernesto depende da vontade política do Estado, o qual, atualmente, exerce uma política de sufocamento que poderá resultar na privatização do hospital e da policlínica, sendo entregue a Organizações de Saúde (OS), que talvez dessem preferência ao lucro, em vez do ensino – alerta.

No Hospital Universitário Antônio Pedro (Huap), em Niterói, o quadro não é muito diferente. A enfermeira Luizete Coelho descreve os efeitos da crise:

– Estamos observando, principalmente, o sucateamento dos aparelhos e a falta de materiais. Como um clínico vai atender um hipertenso sem aparelho de pressão? Ele acaba levando o seu próprio material.

Foto: Thayana Pelluso

Para Luizete, outro ponto que precisa ser melhorado refere-se ao Sistema Nacional de Regulação (Sisreg), criado para gerenciar os atendimentos, da rede básica à internação. Pois o critério geográfico, pondera ela, não raramente se revela insuficiente:

– Encaminham o paciente para um local de atendimento próximo do lugar onde ele mora. Mas, se naquela região não há a especialidade procurada, o doente fica sem opção, pois não pode tomar providências por conta própria.

No dia 16 de março, a gestão do Antônio Pedro foi transferida, pelo Conselho da Universidade Federal Fluminense, para a Ebserh. Empresa pública de direito privado, a nova instituição gestora incorpora lógicas empresariais ao funcionamento dos hospitais. Assim, o Huap deverá cumprir metas de produtividade e estipular prazo máximo de atendimento aos pacientes, além de firmar consórcios com planos de saúde.

Sobrevivência na fila

As filas para atendimentos e tratamentos em unidades públicas de Saúde estão entre os retratos mais emblemáticos da crise na Saúde. De acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), cerca de 20 mil pacientes aguardam só para transplantes de rim – 62% do total de pacientes à espera de um órgão. Regina Lopes está entre eles. Dona de um restaurante na capital paulista, a empresária de 59 anos convive desde 2009 com a doença de Berger, uma doença autoimune que ataca os rins. Submete-se a sessões semanais de hemodiálise, enquanto espera pelo novo órgão. Há um ano Regina aguarda um doador compatível e o andamento da fila. Aflige-se com o ritmo lento. Em 2014, foram feitas apenas 5,5 mil cirurgias de transplante de rim, pouco mais de 25% da demanda. Regina se diz aliviada por não depender do Sistema Único de Saúde (SUS) para as sessões de hemodiálise, pois identifica falhas no sistema:

– Nos postos de hemodiálise administrados pela gestão pública, os pacientes sofrem com a falta de cuidados. O processo já é muito doloroso. Se há descuidos, a luta pelo bem-estar se torna bem mais difícil. A espera por medicamentos também desafia a resistência física e emocional. A estudante de Publicidade Isabela Gonzalez atribui a um “duplo descaso, do poder público e do plano de saúde” a morte do pai, João Luiz Sampaio Queiroz, aos 58 anos, no ano passado Ela conta que João Luiz precisa de “remédios caros” depois de ter se submetido a um transplante de fígado. Por encontrar-se num caso extremo de Hepatite C, João conseguiu ser encaminhado para a cirurgia “rapidamente”. Mas, durante a convalescência, não resistiu à falta de remédios: – Depois da operação, ele precisava, digamos, limpar o organismo. Os medicamentos necessários para este tratamento custavam entre R$ 300 mil e R$ 700 mil. Então, entramos em contato com o plano de saúde, que se prestou a pagar os medicamentos. Mas o tempo foi passando e não obtivemos resposta, e meu pai faleceu em outubro do ano passado. Só um mês depois, em novembro, o Ministério da Saúde liberou a distribuição dos medicamentos pelo SUS. A meta é contemplar, em ano, cerca de 30 mil pacientes em casos semelhantes, com Hepatite C. Especialistas: saída está na gestão Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio, a juíza Flávia Castro concorda que a crise financeira do país agravou a deterioração dos serviços públicos no setor. Ela pondera, contudo, que “o cenário já era problemático antes dos sucessivos cortes de verba”. Ela recomenda que, para garantir os direitos à saúde, pacientes recorram à Defensoria Pública no plantão judiciário. Liminares obrigam os fornecedores estaduais a cumprir as obrigações previstas em lei, em relação, por exemplo, a atendimentos, cirurgias, remédios.

– A saúde é uma obrigação do Estado. A Constituição diz que o primeiro atendimento deve ser oferecido pelo município, criando e organizando a saúde pública. Porém, o único instrumento de que alguns municípios dispõem é uma ambulância, que leva o doente para outra cidade, correndo risco de vida – lamenta a especialista.

Flávia acrescenta que o cumprimento de deveres da administração pública relativos aos serviços de saúde exige que a população “se politize e cobre do Legislativo, do Tribunal de Contas e do Ministério Público o repasse de verbas legalmente determinado. A também advogada Fernanda Paes Leme, professora do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) e do curso de pós-graduação Direito e Saúde da PUC-Rio, acredita que a solução para o “descaso na Saúde” passa pela pressão popular e das categorias profissionais envolvidas com a prestação pública na área: – Quando os servidores do estado deixam de recebe salários por mais de um mês e não têm condições nem de pagar a passagem para irem trabalhar, fica muito difícil garantir serviços satisfatórios.

Para Fernanda, a precariedade de serviços, embora acentuada pela crise financeira, decorre, sobretudo, da gestão dos recursos:

– O direito à saúde não pode ser abandonado mesmo que o país enfrente uma crise. Em meio a consecutivos cortes e bloqueios de verbas, o importante é que os hospitais tenham uma administração competente, que não permita o desperdício de remédios nem o sucateamento de aparelhos.

Foto: Agência Brasil

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