Falta de planejamento não permite ao Rio igualar modelo olímpico de Barcelona
24/08/2016 17:53
Bárbara Tavares e Lucas Paes

Analistas comparam as transformações promovidas no Rio com o legado olímpico deixado na cidade catalã.

Arte: Mariana Salles

O discurso oficial da Prefeitura e do Comitê Organizador das Olimpíadas do Rio de Janeiro era de que o legado olímpico da cidade seguiria o modelo empregado em Barcelona, no ano de 1992. O projeto carioca de reformas urbanísticas priorizou alguns pontos que também foram postos em prática na Catalunha, como a revitalização da área central e a ampliação da mobilidade. No entanto, especialistas alertam que o discurso não é totalmente verdadeiro, devido a diferenças importantes existentes entre os dois polos urbanos. Segundo a professora de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio Ana Luiza Nobre, a ruptura primordial entre as duas cidades é a concepção diferente de planejamento existente nelas. Enquanto Barcelona já realizava transformações independentemente de sediar os Jogos, o Rio esperou sua candidatura sair vitoriosa para iniciar a criação de um projeto para o evento.

– O planejamento de cidade não faz parte da cultura brasileira. A reflexão pública sobre os centros urbanos surgiu no Brasil há mais ou menos 20 anos, o que é muito pouco se comparado à história europeia. Barcelona tem um histórico de pensar sua organização, fator evidenciado pelos excelentes pensadores e integrantes do corpo técnico da prefeitura que auxiliaram nas reformas catalãs para as Olimpíadas de 1992 – diz Ana Luiza.

Os Jogos Olímpicos de Barcelona foram uma virada para a cidade, que enfrentava graves problemas de degradação e infraestrutura. Ao revitalizar a zona portuária, recuperando 4,2 quilômetros de orla – com a demolição de fábricas e galpões que impediam o acesso ao mar –, e construir quase 50 quilômetros de novas vias, Barcelona se tornou um grande polo turístico e cultural. A princípio, as mudanças realmente são similares às transformações feitas no Rio de Janeiro. No entanto, outro fator que afasta os dois projetos é a maneira como o processo foi conduzido no Brasil.

– As decisões que levaram às reformas no Rio de Janeiro não foram nada transparentes. Não houve, por exemplo, consulta pública sobre nenhum assunto. Além disso, informações que deveriam ser públicas não são. E aí voltamos à questão da falta de planejamento prévio, algo que existia em Barcelona. Lá, mal ou bem, havia um temor pela tradição de mobilização e crítica social – aponta a professora.

Zona Portuária. Foto: Agência Brasil

Para o professor de Urbanismo da UFRJ Alberto de Oliveira, a falta de transparência abre espaço para problemas que se tornaram corriqueiros no Brasil durante a preparação tanto para a Copa do Mundo como para as Olimpíadas. Um exemplo é o superfaturamento das obras, que atingiu arenas de futebol construídas para 2014 e trouxe suspeitas também para o Complexo Olímpico de Deodoro – a Polícia Federal investiga desde junho uma possível fraude de R$ 85 milhões nas obras. Obstáculos como esses trazem desconfiança para a ideia de um legado para os cariocas:

– É tão difícil enxergar um legado realmente positivo. As obras no Rio de Janeiro, em si, não são uma dor de cabeça. Elas poderiam ser realizadas em qualquer momento da história da cidade. A grande questão é o fato de se tornarem reais somente por causa das Olimpíadas. Esse megaevento funciona como um catalisador das reformas, e isso é prejudicial ao abrir espaço para que as mais diferentes manobras sejam feitas e desvirtuem o processo de melhora urbana – defende Oliveira.

Como contraponto às críticas sobre transparência, o Comitê Organizador da Rio 2016 se diz alinhado com as preocupações da sociedade civil e que, por isso, disponibiliza informações sobre a realização dos Jogos, abordando temas como as responsabilidades assumidas com as Olimpíadas e o balanço das finanças do evento.

Mesmo com a justificativa do Comitê, especialistas continuam entendendo o impulso gerado pelos Jogos Olímpicos como pressa. Oliveira acredita que a prioridade dada ao evento, e não às transformações propriamente ditas, impõem um prazo para que o projeto seja finalizado e permite distorções geradas, inclusive nos locais onde o dinheiro foi investido. Na avaliação do professor, a Barra não seria o lugar mais adequado para receber tanto dinheiro:

– A Barra é um local de renda média alta, não precisaria receber tantos investimentos. Deodoro, mesmo sendo menos favorecido, também não é tão necessitado, visto que recebeu investimentos do Exército por ter áreas militares. Localidades como Campo Grande, Santa Cruz e Itaboraí precisavam muito mais da infraestrutura. Esse pensamento pode ser ampliado para uma concepção federativa: o Rio de Janeiro de fato seria o lugar mais carente de investimentos?

O pensamento de Oliveira encontra respaldo na opinião do também professor de Urbanismo da UFRJ Cláudio Rezende Ribeiro, que destaca não só o fato de áreas mais necessitadas terem sido deixadas de lado, como também os prejuízos causados aos moradores mais pobres, mesmo das regiões beneficiadas:

– A população carente foi a mais atingida. Além de os moradores terem sido removidos de suas casas, como aconteceu na comunidade Vila Autódromo, ao lado do Parque Olímpico da Barra, o valor do investimento nas Olímpiadas está retirando o capital para melhorar outras questões, como o saneamento. Além disso, há o aspecto da cidade mercantil, com o aumento do preço do solo e, consequentemente, incremento do custo de vida. Esses fatores aumentam a desigualdade social.

Na comparação com Barcelona, na opinião de Ana Luiza Nobre, o Rio também sai perdendo na qualidade das obras. De acordo com a especialista, se na cidade catalã os projetos arquitetônicos eram belos e bem realizados, "no Brasil não sabemos nem quem são os autores das obras”. Ana Luiza é coordenadora do Rio Now, ideia desenvolvida junto a alunos e ex-alunos da PUC-Rio, que tem como principal objetivo a criação de um site para disponibilizar informações sobre o legado olímpico carioca. Um dos trabalhos desenvolvidos pelo grupo foi a identificação dos autores dos mais de cem projetos de arquitetura e urbanismo postos em prática no Rio em virtude das Olimpíadas. No entanto, mesmo com um intenso esforço de pesquisa, pelo menos quinze dos autores ainda não são conhecidos.

Transporte público: um legado não unânime

Foram muitas as frentes de obras montadas pela Prefeitura do Rio na tentativa de remodelar o transporte público da cidade. O Comitê Organizador dos Jogos põe a área de transportes como um dos principais legados a serem deixados para os cariocas. Projetos como o BRT, a linha 4 do metrô e o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) reuniram uma parcela considerável dos investimentos realizados – só na ampliação do metrô foram quase R$ 8,5 bilhões, 21 vezes mais do que o previsto inicialmente. Mesmo assim, a reforma no transporte público não ganha o status de legado positivo com facilidade. Os analistas realçam a necessidade de esperar o decorrer do pós-Olimpíadas para indicar com certeza a validade das transformações:

– Existe uma corrente, dentro da economia, especializada em estudar Jogos Olímpicos, e essa corrente tem demonstrado com fatos e dados que um dos legados mais importantes das últimas edições foi a mobilidade urbana. Temos que esperar para saber se isso acontecerá no Rio, pois a desconfiança com relação ao que foi feito é grande – afirma Maureen Flores, pesquisadora independente e especialista em políticas públicas para megaeventos.

VLT. Foto: Agência Brasil

Uma das questões mais contestadas quanto ao transporte público é o trajeto do VLT. Com extensão de 28 quilômetros, ligando a Rodoviária Novo Rio ao Aeroporto Santos Dumont, a rota não atende a uma área ampla e, para Ana Luiza, satisfaz somente o interesse de executivos que poderão se deslocar do aeroporto para áreas comerciais do Centro:

– Não é um projeto pensado para a população em geral, pois a região do Centro é pouco residencial. Somada a isso, há também a dificuldade de conservação do transporte : os veículos já foram pichados algumas vezes desde a inauguração – e os altos custos para sua manutenção.

O BRT também foi outro projeto pensado para a nova conjuntura da cidade. Funcionando como um transporte articulado que trafega por corredores exclusivos, tem como objetivo facilitar o deslocamento entre áreas mais afastadas. O BRT Transolímpico, por exemplo, liga o Recreio dos Bandeirantes a Deodoro e estima reduzir em 60% o tempo gasto no trajeto. R$ 2,2 bilhões foram investidos no projeto, mas há ressalvas quanto ao seu funcionamento e à validade também dos outros corredores do sistema. O professor de Arquitetura e Urbanismo da UFF Vinícius Netto ressalta que o BRT não é um transporte de massa, o que não permite a redução do número de carros nas ruas:

– As duas questões mais importantes a serem resolvidas são o grande número de carros que circulam pelo Rio e a falta de transportes de massa eficientes. Apesar de diminuir o tempo de deslocamento, o BRT é insuficiente nesses dois outros aspectos – avalia Netto.

Entre todas as ideias, a expansão do metrô encontra a maior repercussão na cidade. Um dos meios de transporte mais utilizados do Rio teria seus trajetos aumentados, chegando até a Barra (linha 4) e passando por outras áreas da Zona Sul, como Leblon e Gávea (linha 3). O projeto da linha 4 é antigo, com a primeira licitação datando de 1998, mas só entrou em execução após a confirmação do Rio como sede das Olimpíadas. Houve atraso nas obras de ambas as linhas, e a 4 será a única funcionando durante os Jogos, ainda com restrições.

– O metrô também suscita muitas dúvidas, até porque não sabemos sequer se as linhas ficarão de fato prontas. Nas Olimpíadas de Londres, em 2012, o metrô funcionou muito bem, mas lá o sistema é completamente integrado, e não em linha como aqui. Outro desafio é a integração entre os diferentes modais, algo que requer um planejamento bem feito – constata Ana Luiza.

O destino das instalações olímpicas

Em Barcelona, apesar dos efeitos positivos em termos de infraestrutura e mobilidade, problemas também surgiram, sobretudo no aproveitamento das construções esportivas no pós-Olimpíadas. O parque aquático em Montijuic, por exemplo, ficou sem utilidade, sendo usado pela população somente no verão – e ainda assim em mau estado de conservação. Além disso, o Estádio Olímpico, ainda que aberto à visitação, não recebe eventos esportivos frequentemente, o que o obriga a sediar atrações de entretenimento. Para Maureen Flores, a pouca utilização das arenas é preocupante, mas também resultado da transformação que enfrenta o modelo de negócios esportivo:

– Os estádios do mundo inteiro são segmentos econômicos que estão sendo transformados. Aquele padrão de estádio, como foi feito há 40 anos, não existe mais. Nem no SuperBowl (a grande final do campeonato de futebol americano), evento esportivo gerador do maior volume de dinheiro nos EUA, existe mais esse modelo de vender ingressos só por causa do jogo. Dessa forma, usar as arenas para outros fins, como aconteceu com o Maracanã que foi palco de shows, não é uma ação apenas dos brasileiros. Esse é um segmento econômico que vem se reinventando e, portanto, acaba entrando para a indústria do entretenimento.

Pouco tempo após o encerramento da Rio 2016, alguns especialistas já apontam e estudam possíveis problemas deixados pelos projetos. A professora da PUC-Rio Ana Luiza lembra um dos casos mais emblemáticos: a remoção dos moradores da Vila Autódromo, na entrada do Parque Olímpico da Barra. Hoje com apenas 20 famílias, o terreno, que abrigava cerca de 700 grupos, é público. No entanto, a maior parte dos investimentos lá postos são privados, o que pode gerar um transtorno no pós-Jogos.

– O medo é resultado do fato de que aquela área não mais poderá ser aproveitada pela população em geral. Mesmo sendo uma região pública, os investimentos particulares tornarão o lugar propriedade somente de alguns que poderão usá-lo – justifica.

Apesar de alguns projetos não proporcionarem o resultado esperado, no entanto, Ana Luiza ressalta que nem todos devem ser criticados e observa as diferenças entre os exemplos positivos e negativos:

– A arena de handball é o melhor exemplo de rendimento dos suportes, pois ela foi pensada para ser desmontada e dar lugar a quatro escolas. Não é um grande projeto, mas, pelo menos, considera a reutilização, que justifica o investimento. O velódromo do Parque Olímpico da Barra, por exemplo, é uma obra muito complexa e cara. Qual uso esse velódromo terá para justificar os investimentos? Provavelmente nenhum à altura dos gastos – declara a professora.

Olimpíadas e seus efeitos econômicos

Um dos grandes benefícios alegados a respeito da Rio 2016 seria a movimentação da economia. Maureen Flores, inclusive, destaca a oportunidade de se discutir o esporte como segmento econômico:

– O Brasil trata o esporte como objeto de paixão, quando na verdade é o objeto da razão. O esporte é um segmento econômico e precisa ser tratado como tal. Ele já se difundiu como indústria do entretenimento e é um setor bilionário. Os megaeventos, com todos os seus pontos positivos e negativos, abre essa janela para discutir a política do esporte. Dificilmente isso teria acontecido agora com todas as prioridades que o Brasil tem.

No entanto, para Oliveira, pela escala dos megaeventos anteriores, os Jogos Olímpicos não têm muito potencial de efeitos econômicos positivos em longo prazo. O setor de transporte público, por exemplo, que recebeu investimentos mais vultosos, não empregará um número tão grande de pessoas, segundo ele.

Já o turismo, que corresponde a uma parcela muito pequena da receita nacional e no qual a maioria dos empregos gerados são temporários, “não foi explorado da forma como deveria”, afirma Maureen Flores:

– Nós somos um país de grandes extensões. A Austrália, similar nesse sentido, fez uma enorme campanha para ser colocada como destino turístico, uma campanha muito bem-sucedida por sinal. Nós, por outro lado, não fizemos nada. O turismo é uma atividade no Brasil muito mal coordenada e, embora seja um exercício do setor privado no mundo inteiro, depende muito das políticas públicas. Então, nós fizemos muito estudo de oferta, mas nada de demanda, o que pode ser percebido desde a Copa do Mundo de 2014.

Seguindo o que aconteceu na Europa, nos Estados Unidos e na China, no Rio os investimentos em gestão urbana não atendem a grupos econômicos grandes, uma vez que atingem lugares específicos da zona urbana. A visão, defendida por Oliveira, se soma ao fato de os investimentos dos países de renda baixa serem muito maiores, pois os ricos já dispõem de estruturas previamente construídas. Esse pensamento também vai ao encontro da afirmação de Claudio Rezende:

– Em vez de usarem o Centro, onde já havia estrutura montada, o palco para as Olimpíadas ficou concentrado na Zona Oeste. Levar o investimento para a Barra, por exemplo, estica ainda mais a área e, consequentemente, o investimento é maior, pois é preciso sustentar aquela estrutura. Ou seja, os gastos financeiros são muito grandes antes e depois das instalações, dificultando o aproveitamento econômico que poderia servir como legado.

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