Fim da Era João Havelange
18/08/2016 16:20
Juliana Valente

Autor da biografia de João Havelange, jornalista Ernesto Rodrigues, professor da PUC, comenta a importância do ex-presidente da Fifa: “Foi o brasileiro mais poderoso do século XX”


Em seus cem anos, João Havelange deixa um legado de transformações e controvérsias para o mundo esportivo. O ex-presidente da Federação Internacional de Futebol (Fifa), que morreu no dia 16 de agosto, era respeitado mundialmente e conhecido pela personalidade forte e polêmica.

Havelange tirou da experiência nos campos e nas piscinas – disputou o Carioca Juvenil pelo Fluminense em 1931 e natação nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936 – a base para a sua formação profissional.

A Era Havelange começou com a eleição para a presidência da antiga Confederação Brasileira de Desportos (CBD), atual CBF, no ano de 1958. A delegação brasileira passou a contar com assistência de médicos especializados como nutricionistas, dentistas e psicólogos, no que é considerado o primeiro passo para a profissionalização da Seleção Brasileira. Indicado por unanimidade candidato à presidência da Fifa, Havelange assumiu o cargo em 1974, permanecendo até 1998.

Responsável por transformar a Fifa na entidade bilionária que é hoje, pela adoção do sistema de patrocínios, e figura importante para que o Rio de Janeiro ganhasse, em 2009, o direito de sediar a Olimpíada de 2016, agora em curso, Havelange pode ser considerado o brasileiro mais poderoso do século XX no mundo.

– Se levarmos em conta o prestígio no mundo, temos vários brasileiros como Ayrton Senna, Pelé, Tom Jobim. Agora, quanto ao poder político, eu não conheço e não vejo nenhum brasileiro que tenha tido um poder internacional como o Havelange teve, considerando a importância que o futebol tem no mundo. Acho que mesmo que um brasileiro tivesse sido Secretário Geral da ONU teria tanto poder quanto ele teve nestes quase 30 anos de comando na Fifa – afirma o jornalista Ernesto Rodrigues, autor da biografia Jogo duro: A história de João Havelange (Ed. Record, 2007) do documentário Conversas com JH (2013).

Assista aqui a trechos do documentário

Rodrigues, professor licenciado do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, define o cartola que globalizou o futebol como uma pessoa complexa, um político habilidoso e um homem autoritário. O jornalista acredita que a morte do cartola represente o fim de uma era.

– João Havelange foi símbolo de uma época tanto pelo lado positivo como por um lado não tão positivo. Ele deixa um legado que ao mesmo tempo é de um grande administrador que transformou o futebol em um negócio bilionário e, por razões até eleitorais, para ter votos na Fifa acabou democratizando o futebol.

Por outro lado, assinala Rodrigues, Havelange foi um dirigente típico que reproduziu no futebol práticas que ocorrem no país há décadas, como a política do caixa dois e do coronelismo político.

Rodrigues também ressalta a maneira sábia e perspicaz com a qual o brasileiro aproveitou o momento histórico que o mundo vivia:

– Não dá para ver o Havelange como santo nem como demônio. Dificilmente teremos um novo João Havelange. Não vejo ninguém com as características e, principalmente, não vejo um momento histórico propício para isso acontecer. Ele foi muito inteligente e soube se beneficiar de uma Fifa muito fechada dentro da Europa ao colocar africanos, asiáticos e representantes de outros países que não tinham representação nenhuma dentro da Fifa. Essas condições históricas permitiram esse reinado dele por mais de 30 anos.

Cercado por escândalos de corrupção, Havelange e o genro, Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, foram acusados em 2010 de aceitar propina da agência suíça de marketing esportivo, ISL, para que esta fosse a única com contrato com a Fifa. A denúncia fez com que Havelange renunciasse ao cargo de membro do Comitê Olímpico Internacional (COI) e, três anos depois, à presidência de honra da Fifa.

– Acredito que o futebol brasileiro e a sua administração jamais voltará a ser como foi na época do Ricardo Teixeira e do João Havelange. Mas, ainda assim, não vai ser o mundo dos sonhos em que todo mundo é bem intencionado. Existem intenções, não boas intenções. Assim como não acho que a política brasileira, só por causa de um juiz do Paraná (Sérgio Moro), vá se transformar em um outro Shangri-Lá; não é por aí.

A biografia é fruto de quase dois anos de pesquisa e de mais de uma centena de entrevistas, entre elas com jornalistas e pessoas dos mais diversos níveis de relacionamento com Havelange. Assim como outros biógrafos, Rodrigues enfrentou problemas antes do lançamento, em 2007.

– Eu escrevi o livro possível em uma época em que ainda existia no país um absurdo artigo da lei que permitia ao biografado e à família impedir que uma biografia fosse escrita, seja o conteúdo verdadeiro, calunioso ou difamante. Eu dependia da aprovação dele para fazer o livro e, mesmo com a aprovação, ele exigiu ver os originais. Eu aceitei, mas com a condição de que a palavra final seria minha. Quando ele leu, desaprovou o livro. Nos encontramos, pois queria ouvi-lo, e ele manifestou toda a sua arrogância e assustadora vaidade.

No documentário Conversas com JH, Rodrigues traz os bastidores das conversas que teve com Havelange para a realização da biografia autorizada. O filme aborda os muitos conflitos e obstáculos enfrentados pelo jornalista e escritor até o lançamento do livro.

– Esse documentário conta o meu drama. O livro, que começou de uma forma muito boa, terminou de uma maneira muito traumática – comenta sobre a dura negociação para não ter a biografia censurada, como revela o filme.

Havelange, que estava internado desde julho, no Hospital Samaritano, morreu em decorrência de infecção generalizada causada por uma pneumonia. O ex-presidente da Fifa foi enterrado na tarde do mesmo dia 16 no cemitério São João Batista, Zona Sul do Rio. A pedido da família, seu corpo não foi velado.

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