Nadadora refugiada comemora o ouro de uma nova vida
23/08/2016 12:27
Cecília Bueno

Banhada pelo impossível, a síria Yusra Mardini conta como fez da Rio 2016 um trampolim para ambições esportivas e humanitárias

Mural pintado no Rio de Janeiro em homenagem aos refugiados. Foto: Agência Brasil


Yusra Mardini transita com inquietude pelo salão do segundo andar do Hotel Windsor Atlântica, em Copacabana. As expressões faciais flutuam entre o encanto e a exaustão. Em meio às conversas aqui e ali com os jornalistas reunidos na coletiva de imprensa sobre atletas refugiados, ela tira o celular do bolso do short e, com a destreza comum a uma jovem de 18 anos, passa a digitar mensagens sob os olhares cúmplices do inseparável amigo Rami. Os dois, nadadores sírios, competiram nos jogos pela equipe olímpica de refugiados apoiada pela Visa. Fazem parte da turma mais oito esportistas:um maratonista da Etiópia, dois judocas da República Democrática do Congo, e cinco corredores de meia-distância do Sudão do Sul.

Embora tivessem ficado longe dos holofotes predominantemente concentrados nos recordes e medalhas, esses recordistas da resistência carregaram de novos sentidos as tintas de superação que banham a tradicional festa esportiva. Ecoaram um recado ainda mais eloquente do que os pódios acumulados ao longo das duas semanas olímpicas: acima de medalhas, devem prevalecer esforços para dirimir a pior crise humanitária pós-Segunda Guerra.

A história de Yusra tornou- se um símbolo de esperança aos refugiados. O esporte revelou-se passaporte para uma vida longe dos horrores da guerra civil síria, e a Rio 2016 carimbou-lhe guinada de vida. Nos Jogos recém-encerrados, Yusra disputou duas provas de natação. Numa delas, os 100 metros borboleta, até venceu a bateria, mas não com tempo suficiente para se classificar à semifinal. Saiu da piscina, todavia, banhada pela sensação do ouro.

Há um ano, o sonho de competir numa Olímpiada não passava de abstração. Os conflitos minavam a chance de carreira olímpica e, pior, de uma vida de paz. Ela e a irmã resolveram, então, deixar a Síria. De bote inflável, cruzariam parte do Mediterrâneo, para depois, pela Europa Central, chegarem até a Alemanha.

Entre a Turquia e a Grécia, o motor da embarcação pifou. Com a ajuda de dois homens, as irmãs puxaram o bote com cordas. Três horas e meia de braçadas no mar, até o território grego. De lá, partiram para Berlim, onde começaram a treinar natação. Yusra logo ganhou a admiração do treinador Sven Spannekrebs, o atual técnico. “Ela sempre foi a mais focada, estava sempre escutando, treinava mais que todos os outros colegas”, conta.  O sonho olímpico ficava mais concreto. “Quando se tem um grande sonho, é preciso se entregar de todo para ele. Somos corpos sem alma quando deixamos nossos sonhos para trás”, filosofa a jovem atleta.

Foto: Divulgação


Ápice da recente carreira de nadadora, a Rio 2016 ultrapassou, para Yusra, a dimensão esportiva. “É incrível poder competir em nome dos refugiados e mostrar que somos pessoas como todo mundo”, reflete a atleta, agradecida à patrocinadora pela formação da primeira equipe olímpica de refugiados.

Fora d’água, pelo menos um comportamento de Yusra ilustra o que quis dizer com “pessoas como todo mundo” Terminadas as provas, ela não deu por encerrada a experiência na cidade. Faltava mergulhar numa tietagem obrigatória: “Preciso encontrar o Phelps para tirar uma foto”, brincava, entregando-se à reverência geral ao nadador americano recordista de medalhas olímpicas (22, 18 delas de ouro).

Filha de um técnico de natação, Yusra pratica o esporte desde os três anos de idade. Compara o relacionamento com a natação ao de uma “melhor amiga”:

 – Toda vez que fico triste com alguma coisa ou com raiva de alguém, entro na piscina e nado.

Para quem sempre fez da natação uma diretriz, Yusra traça planos um tanto diferentes na volta para casa.  Pretende ajudar os refugiados, por meio de programas da ONU, e cogita escrever um livro: “Não sei, talvez comece a escrever a minha história. Sempre gostei de escrever”. A ideia é recebida com surpresa pelo técnico: “Essa eu ainda não sabia”. Para ele, depois do Rio, Yusra precisa “viver um tempo como uma adolescente normal”:

 – Quero que ela encontre o que quer fazer de verdade e consiga achar um caminho por ela mesma. Tenho medo de que se sinta obrigada a ser sempre a figura exemplar, a Yusra Mardini – pondera Spannekrebs.

Antes de deixar o encontro com os jornalistas, a jovem, já acostumada ao impossível, permite-se especular outra aventura: “Também queria ser piloto de avião. Mas as pessoas dizem que é impossível eu conciliar as duas coisas. Se tiver de escolher, fico, claro, com natação”, declara-se a atleta, agora mirando o ouro nos Jogos de Tóquio, em 2020. Quem haverá de duvidar de uma menina que nadara por mais de três horas no mar atrás de uma janela para a vida?

Mesmo se o pódio japonês não vier, Yusra brilhou o suficiente não só para reescrever o próprio destino, mas para ajudar, ao lado dos outros congêneres na Rio 2016, lembrar o mundo de uma agonia efervescente. Quase 65,5 milhões de pessoas deixaram os lares por conta de conflitos e perseguições, estima a ONU. Cerca de 40 milhões tentam refúgio em outros países. Um milhão deles arriscaram-se, assim como Yusra, pelo Mediterrâneo. A maioria, contudo, não teve desfecho animador. Talvez os ecos do ideário olímpico possam contagiar os esforços mundiais para solucionar tamanha crise humanitária.

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