Educadores alertam: reforma precisa se ajustar a traços sociais do país e à formação ética, crítica e cidadã
30/09/2016 09:25
Camila Gouvea e Carolina Ernst

Especialistas avaliam as principais mudanças propostas para o ensino médio

Foto: Agência Brasil

Considerada a maior mudança da educação desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, implantada em 1996, o plano de reforma do ensino médio anunciado pelo MEC na quinta-feira passada dividiu os especialistas. Embora no atacado represente uma esperança para boa parte de pesquisadores e profissionais da área, especialmente por flexibilizar o currículo, no varejo as medidas despertam controvérsia (veja as principais propostas no fim do texto). Sinal de que precisam ser ajustadas para se cumprir um dos grandes desafios nacionais: melhorar o nível da educação, ainda bem inferior ao de países desenvolvidos e incompatível com o patamar de nona economia do mundo. Apesar de avanços observados nos últimos anos, o Brasil é 131ª entre os 139 países do levantamento sobre qualidade geral de ensino apresentado, em junho, no Fórum Econômico Mundial, na Suíça. A lanterna se reflete, em parte, na queda de seis posições no ranking de competitividade recém-divulgado (de 75º para 81º), entre os 138 países avaliados pelo Fórum, em parceria com a Fundação Dom Cabral.

Se a necessidade de reformar a educação revela-se um consenso entre professores, pedagogos, alunos e autoridades, como um caminho indispensável para, entre outros proveitos, melhorar as condições socioeconômicas e a competitividade do país, especialistas ressaltam a importância de reflexões para aperfeiçoar a reforma proposta. A começar, talvez, pelo alvo em torno do qual se concentraram mais polêmicas: a  flexibilização do currículo: alunos poderão escolher disciplinas alinhadas já ao plano de vida profissional. Doutora em Educação pela PUC-Rio e pesquisadora do laboratório de Avaliação da Educação, Alicia Bonamino ressalva:

– A diversificação do currículo, com caminhos alternativos para o estudante, pode vir a ser uma iniciativa interessante e até necessária, mas precisa levar em conta que uma parte dos jovens que chegam ao ensino médio acumula problemas de aprendizagem, como mostram recorrentemente os resultados do Saeb e as metas não atingidas do Ideb. Até que ponto esses jovens têm uma base de conhecimento capaz de prepará-los para fazer escolhas de futuras trajetórias acadêmicas e profissionais? Até que ponto as escolhas dos jovens não irão depender das oportunidades desiguais que a origem social e a inserção territorial lhes oferecem? Questões deste tipo também se podem ser levantadas em relação à escolaridade de tempo integral.

Para a vice-reitora de Educação da Universidade de Ciências Aplicadas de Oslo, Nina Waaler considera positiva a mudança para um modelo escolar flexível e articulado com horizontes profissionais. Ele reconhece, contudo, a necessidade de adaptar tal modelo, comum em países desenvolvidos, aos traços culturais, sociais e regionais do Brasil.

– Esse perfil de escola é importante porque jovens têm diferentes pensamentos, sonhos e ideais do que querem fazer no futuro. A escolha deles é extremamente importante, mesmo sendo tão jovens – ressaltou a especialista ao Jornal da PUC, enquanto se preparava para participar do debate que reuniu especialistas da Noruega e da Universidade, na terça-feira passada, um dia depois de o MEC ter anunciado a proposta de reforma.

Igualmente central na reestruturação pretendida pelo governo, o aumento da carga horária da escola – de 800 para 1,4 mil horas anuais – também é objeto de controvérsia. Embora educadores e pesquisadores reconheçam supostos ganhos ao aprendizado e ao rendimento dos estudantes, eles recomendam que os programas sejam também ajustados às peculiaridades do país. Para o pesquisador Edgar Lyra, doutor em Filosofia pela PUC-Rio, a proximidade com o ensino integral deve estar em compasso com as características sociais e culturais brasileiras:

 

– Embora o ensino médio precise ser, com urgência, repensado, a oferta universalizada de sete horas diárias de atividades escolares deveria começar pelos níveis fundamental I e II. Mas, isso é pano para muitas mangas. Voltando ao ensino médio, temo que o aumento da carga horária exigida de jovens e adultos que precisam trabalhar possa gerar um fenômeno atroz de evasão. Apenas um programa muito bem estruturado, muito integrado às nossas questões sociais, conseguiria evitar isso. Mas, sinceramente, não vejo nenhuma sinalização nesse sentido.

 

Arte: Mariana Salles

 

Edgar também pondera que a opção por tornar opcionais disciplinas como filosofia, sociologia, artes e educação física pode prejudicar a formação ética, crítica e cidadã do estudante:

 

Outra coisa a ser pensada concerne à formação geral, à formação ética, política e cidadã do estudante.  Não me parece bom restringir essa formação ao núcleo comum de um ano e, quem sabe, às opções pelas ciências humanas ou às linguagens. Não consigo pensar em nada pior que um mundo povoado por técnicos brilhantes, eficientíssimos, mas dispostos a tudo por um bom lugar no mercado de trabalho, técnicos dados à competitividade predatória e à busca do sucesso a qualquer preço. Soa estranho que se pretenda seguir falando em educação integral ao mesmo tempo em que se sinaliza com um esvaziamento da escola em sua responsabilidade de formação para a sociabilidade, para a reflexão crítica, para a vida ética.

 

Mudanças nas condições de contratação de professores também vêm sendo alvo de ressalvas feitas por especialistas no setor. A maioria delas concentra-se na permissão para admitir profissionais do ensino técnico e profissionalizante não necessariamente com diploma da área que irá lecionar. Hoje, dos aproximadamente 518 mil professores da rede pública, 200 mil dão aulas em disciplinas diferentes daquelas nas quais se graduaram e 52% não completaram o ensino superior.

Apontada por dez entre dez analistas como um dos pilares para a virada da educação brasileira, a qualificação de mão de obra esbarra sistematicamente, reiteram eles, em salários e estruturas pouco animadoras. Resultam no déficit crônico de professores com formação específica constatado em balanço feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Os esforços coordenados para impulsionar a educação brasileira – da flexibilização do currículo e do aumento da carga escolar às estratégias de qualificação – devem ser acompanhados de “um debate público amplo”, ressalta Alicia. Ela lembra que a tal procedimento foi adotado, por exemplo, na elaboração da Base Nacional Comum (acesso de pais e responsáveis aos conhecimentos e habilidades que os alunos deverão ter aprendido ao final de cada ano letivo), cujo documento, aberto a contribuições da sociedade, contabilizou 12 milhões de sugestões populares.

 – O desenho da reforma precisa interagir com as experiências, ideias e visões de mundo dos atores que vão executá-la e com a infraestrutura das escolas – reforça a professora.

Apontada pelo MEC como uma alavanca para o salto da educação brasileira rumo ao padrão de países desenvolvidos – um salto olímpico, considerando-se indicadores como a 58ª posição, entre 65 países, no ranking do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (OCDE)  –, foi apresentada, semana passada, no formato de Medida Provisória, cujo trâmite no Congresso se mostra mais rápido. Pois há urgência em “mudar a arquitetura legal desta etapa da educação”, justificou o ministro da Educação, Mendonça Filho. Especialistas concordam com a premência da reestruturação, mas evocam a relevância de reflexões para aperfeiçoar ou ajustar os pontos principais. Para virar lei, a MP tem de ser aprovada por comissão especial do Congresso e por deputados e senadores.

 

Arte: Mariana Salles

Mais Recentes
Angústia do lado de fora das grades
Mães relatam o medo de os filhos contraírem Covid-19 no cárcere
Os 30 anos do voto democrático
Constituição de 1988 completa 30 anos e marca a abertura do voto facultativo para jovens de 16 e 17 anos, idosos acima dos 70 e analfabetos 
Informalidade no trabalho se torna empreendedorismo
Aumento do número de empregos sem carteira assinada apresenta nova face do trabalhador brasileiro