Uma voz na escuridão
30/09/2016 18:16
Julia Novaes e Juliana Valente / Fotos: reprodução do livro "O Cardeal da Resistência"

Dom Paulo Evaristo Arns completa 95 anos e é lembrado como símbolo da luta contra a ditadura militar

Ato ecumênico realizado em 1975

Em 31 de outubro de 1975, no interior da Catedral e na Praça da Sé, em São Paulo, ecoou uma voz. Oito mil pessoas se reuniram, às 15h, para o que hoje é lembrado como a primeira rachadura nos muros de chumbo da ditadura militar. A polícia até tentou frear a multidão ao desviar o trânsito da cidade. Mas de nada adiantou para evitar que fossem ouvidas as palavras de resistência e coragem do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns: “Basta! Vladimir Herzog foi assassinado.”

Hoje, o homem que tinha uma fala contundente contra a repressão não participa mais da cena brasileira. Aos 95 anos, Dom Paulo se aposentou da vida pública. Mas continua sendo lembrado pelo legado de transformações dentro e fora da Igreja.

Seis dias antes, o jornalista Vladimir Herzog havia sido assassinado nos porões do DOI-CODI. A versão oficial do regime era de que Vlado havia se suicidado. Dom Paulo, à época Arcebispo de São Paulo, com o rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright, organizou o culto ecumênico da Sé em memória do jornalista.

Dom Paulo e o rabino Sobel participam de cerimônia de um ano da morte do jornalista Vladimir Herzog

Preso e torturado no mesmo período e local que Herzog, o jornalista paulista Sérgio Gomes conta que a repercussão do culto em homenagem a Vlado salvou sua vida – o DOI-CODI foi esvaziado, e as execuções postergadas. Durante sua detenção, os pais, amigos e parentes de Gomes foram recebidos pelo Cardeal, que ofereceu palavras de conforto e fez contatos que possibilitassem a soltura.

- Meu reencontro com Dom Paulo aconteceu duas ou três semanas depois de eu sair da prisão, em abril de 1976, em que agradeci a ele pelo apoio dado à minha família. Foi um encontro muito marcante para a minha vida. Nesse dia, ele me disse que se há necessidade de solidariedade, ela deve ser imediata; quando ela não o é, chama-se cálculo. Aí passei a ajudá-lo com tudo que era possível. Era o que eu queria, retomar tudo de novo.

Ligado à militância política de esquerda, Gomes conheceu Arns enquanto ainda era estudante de Comunicação Social na USP. O Centro Acadêmico Lupe Cotrim, do qual fazia parte, foi o único a buscar cooperação com a Cúria Metropolitana de São Paulo. Para ele, isso abriu o caminho para que a Igreja participasse de atos em solidariedade às famílias dos perseguidos e presos políticos – como a missa de sétimo dia do líder estudantil Alexandre Vannucchi.

- Sabemos que essas ações ficaram lembradas mais como atos políticos do que religiosos. Não foi, absolutamente, uma instrumentalização da religião, mas o significado era, inclusive para Dom Paulo, de luta pela paz, justiça e democracia – diz.

O medo da expansão do comunismo fez a Igreja Católica se alinhar à oposição do governo de João Goulart, dar cobertura ideológica ao golpe de 1964 e até mesmo negar as torturas. De acordo com Frei Betto, preso duas vezes durante a ditadura, quando Dom Paulo assumiu a Arquidiocese de São Paulo em 1970, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) já havia mudado de posição. A decretação do AI-5, em 1968, durante o governo do general Artur da Costa e Silva, fez com que a CNBB o apoiasse na luta pelos direitos humanos.

O AI-5 marcou o início dos anos de chumbo. Foi o auge das torturas, dos desaparecimentos e das mortes, que só começou a declinar com o ato ecumênico de 1975. O diretor do Departamento de Ciências Sociais, professor Ricardo Ismael, aponta que foi nesse contexto que a atuação estratégica de Arns foi mais importante, já que muitos líderes políticos – como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e Leonel Brizola – estavam exilados, e, a sociedade, incapacitada de se manifestar.

- Nos anos 70, era muito arriscado lutar contra a ditadura, porque a luta era muito desigual. A maioria não podia falar - estava proibida, exilada, presa, ou mesmo calada porque não podia falar, e, se falasse, não saía no jornal, na TV, no rádio... Arns ocupou, portanto, um espaço de voz na escuridão, sabendo que ninguém teria coragem de prendê-lo.

Uma das 46 fichas que Dom Paulo tinha no DOPS

Considerado subversivo pelos militares, Dom Paulo acumulou 46 fichas no DOPS. Esses documentos se referiam à atuação do Arcebispo contra o regime e o acusavam de praticar atividades comunistas. Apesar do rastreamento, o Cardeal nunca foi tocado, embora tenha recebido ameaças por carta e telefone. Como Arcebispo de São Paulo, qualquer sanção teria repercussão internacional. Segundo Ricardo Carvalho, autor da biografia O Cardeal da Resistência – as muitas vidas de Dom Paulo Evaristo Arns, tal intangibilidade também se deve ao medo que os militares tinham.

- Os policiais tinham medo de Dom Paulo, do olhar, da palavra que fuzilava. Quando Santo Dias da Silva (operário, membro da Pastoral Operária de São Paulo) foi morto pela PM durante a greve dos metalúrgicos de 1979, ele colocou o dedo na cara de cada um dos policiais. Havia uma verdade nele com uma força imensa – lembra.

Além do fato de ocupar um cargo que o blindava, Dom Paulo era uma força tranquila, com uma voz calma, diferente da que predominava no Brasil naquele tempo. Segundo Sérgio Gomes, Arns não era uma pessoa soturna, e raramente levantava a voz – sempre foi o homem da luz, e isso só aumentava a raiva dos militares.

 - Dom Paulo era muito odiado pela extrema direita torturadora. Durante a minha prisão, descobriram minha relação estreita com ele, e por isso tive uma noite surrealista: passaram a noite me batendo, mas era Dom Paulo quem apanhava - xingavam ele de “fdp”, “v.”. Também forjaram fotos dele como se estivesse participando de orgias, para tentar desmoralizá-lo – relata.

A defesa intransigente dos direitos humanos feita por Arns foi estratégica, calculada. Em 1972, para dar proteção aos presos e perseguidos políticos necessitados de assistência jurídica e divulgar ao mundo as violências praticadas no Brasil, ele recriou a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. Integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e advogado criminalista, José Carlos Dias foi convidado por Arns para compor a equipe.

- Dom Paulo teve papel de vanguarda nas denúncias das violações de direitos humanos, dando também apoio às famílias dos perseguidos políticos que nos procuravam. Um exemplo foi quando, na visita do então presidente dos EUA Jimmy Carter ao Brasil, o Cardeal o acompanhou de carro até o aeroporto, e contou as violências praticadas aqui – diz.

Arns também articulou a redação do projeto Brasil: Nunca Mais, desenvolvido em sigilo por um reduzido grupo de especialistas durante mais de cinco anos, a partir de documentos do Tribunal Superior Militar. O material resultou em um livro que reúne as cópias que foram feitas, uma a uma, das páginas de 707 processos completos e dezenas de outros incompletos. Essa apuração concreta das ações militares serviu de base para o trabalho da Comissão Nacional Verdade, que atuou de 2012 a 2014.

Segundo Ricardo Ismael, esse projeto é importante para colocar os brasileiros a par do que realmente ocorreu durante o período obscuro na história do Brasil.

- Havia uma preocupação de que esses episódios tivessem real dimensão, porque durante a maior parte do regime, a censura atuava de maneira muito forte, e a maioria do povo brasileiro não sabia o que estava acontecendo. O livro revela uma preocupação com a memória e mostra também para as novas gerações que isso não deve se repetir.

A atuação de Dom Paulo repercutiu para além das fronteiras. Enquanto a Igreja Católica na Argentina, no Chile e no Paraguai era ultraconservadora e integrava a estrutura dos estados ditatoriais, a de São Paulo acolheu vítimas desses países de braços abertos. De acordo com Ricardo Carvalho, a esquerda latino-americana percebeu que podia contar com Arns, cuja oposição sistemática aos horrores da ditadura salvou muitas vidas no continente.

Cardeal Dom Cláudio Hummes, sucessor de Arns na Arquidiocese, afi rma que as ações dele atribuiram à Igreja na América Latina um caráter engajado no social e atento às injustiças institucionalizadas.

- Como pessoa humana, Dom Paulo é um franciscano, muito simples, muito amigo. Ele é um homem que se distinguiu sobretudo como um defensor dos direitos humanos, que sempre esteve à frente, nunca teve medo. Mas também, localmente, ele foi um homem dos pobres, que trabalhou para potencializar a atuação social da Igreja Católica nas periferias de São Paulo — diz.

A simplicidade é marca registrada da ordem dos franciscanos. Em 1973, ano em que foi nomeado Cardeal, Dom Paulo vendeu o Palácio Episcopal Pio XII, residência oficial do Arcebispo por US$5 milhões. Com o dinheiro, construiu 1.200 centros comunitários na periferia paulista. O episódio fortaleceu as Comunidades Eclesiais de Base, as pastorais sociais e a Operação Periferia, uma ação missionária que, por meio de panfletos, pregava a conscientização de classe e politização dos marginalizados da cidade. O biógrafo Carvalho comenta que, a partir daí, as pessoas puderam se reunir e mudar a cara da periferia.

- As Comunidades Eclesiais de Base permitiram que as pessoas tivessem um lugar para se reunir e reivindicar seus direitos. De repente apareceu um monte de gente falando “eu quero creche, quero hospital”, e isso não tinha força antes de Dom Paulo.

Lugar de resistência contra a ditadura, essas comunidades também tiveram papel importante no ressurgimento do movimento sindical – até então sufocado pelo regime –, a consolidação da liderança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a culminação nas grandes greves operárias de 1979 e 1980. Segundo Ismael, o apoio não só da Igreja como do MDB, o único partido de oposição, legitimou as demandas salariais dos trabalhadores.

- Como na época era proibido fazer greve, os dirigentes sindicais poderiam até ser presos, destituídos das diretorias dos sindicatos pelo Ministério de Trabalho e até enquadrados na Lei de Segurança Nacional. O fato de setores da sociedade civil importantes, como a Igreja Católica e o MDB, passarem a dizer que era legítima a organização dos trabalhadores, foi essencial.

Ricardo Carvalho conta que quando Lula, na época líder sindical no ABC paulista, foi preso pelo DOPS, em 19 de abril de 1980, sentiu-se aliviado ao descobrir que Arns já estava ciente da sua detenção.

- A importância de Dom Paulo era tão grande que quando Lula estava no carro da polícia e escutou no rádio que o Cardeal já sabia da sua prisão, ele falou “Bom, agora estou salvo, não me matam mais” – diz.

Segundo padre Luís Corrêa, S.J., do Departamento de Teologia, a partir de 1978, com o Papa João Paulo II, a Igreja Católica voltou a atenção para o Leste Europeu e restringiu o caráter político do bispado da América Latina. Padre Luís aponta que a CNBB e as CEBs perderam o espaço na política brasileira que tinham nos anos 70 e início dos anos 80.

- Por um lado, isso se deve à superação do contexto da ditadura militar, em que a Igreja era uma alternativa importante para dar vazão a opiniões discordantes, mas uma outra parte desse esvaziamento ocorreu por causa da política de João Paulo II e das nomeações episcopais conservadoras que ele fez.

“Coragem!” era como Dom Paulo terminava todas as conversas, um incentivo para continuar a luta. Hoje, Arcebispo Emérito de São Paulo, ele é lembrado como uma das grandes lideranças humanistas do século XX. Ricardo Ismael aponta a necessidade, nos dias de hoje, da presença atuante de pessoas como ele.

- É importante que voltemos a falar de pessoas como Dom Paulo, pois precisamos novamente delas. Não para que elas conduzam o rebanho, ou que precisemos de um salvador da pátria. Estamos em falta de pessoas que consigam discutir a agenda e as prioridades do país, os problemas que afetam os trabalhadores e as famílias, e as brigas em que nós temos que nos meter e as que temos que esquecer. Não se trata mais de barrar os porões da ditadura. A questão, hoje, é a relação entre a PM e as comunidades, a violação dos direitos humanos, das mulheres, dos LGBTs, dos negros, dos índios... Hoje precisamos combater outros porões.

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