Rap, hip hop e pichação: cultura de rua e as relações de trabalho
01/11/2016 18:48
Gabriela de Vicq com fotos de Fernanda Szuster

Organizada pela Fevuc, mesa nos Pilotis trouxe discussão sobre diferentes tipos de arte urbana

O raper Sahell

Tatuagens e dreads configuravam o perfil nada tradicional dos convidados à mesa Cultura de Rua e as Relações de Trabalho, da Feira de Valores da Universidade Católica (Fevuc), organizada pela Pastoral Universitária. Quem passava pelo Pilotis do Kenedy, na quinta-feira, 27, podia ouvir Kel Pastore, Sahell e Cesar Schwenk, todos do universo da arte urbana, contarem suas trajetórias e comentarem sobre como são as relações nesse meio informal. O papel da mulher na cena do rap e do hip hop – muitas vezes hostil – também foi debatido.

A Fevuc teve este ano como tema central “as relações trabalhistas e os direitos humanos”. No mundo do hip hop, do rap, do grafite e da pichação, segundo os convidados, as relações de trabalho são baseadas na palavra. Como não há legislação trabalhista nesse meio informal, o que rege os acordos é a confiança – incluindo negociações com traficantes e milicianos.

O rapper Sahell se dedica às rimas desde criança. Em 2010, ele formou o Circuito Carioca de Ritmo e Poesia (CCRP), que promove semanalmente oito rodas culturais: às segundas em Manguinhos, às terças em Botafogo, às quartas no Méier e na Freguesia, às quintas no Recreio e na Vila Isabel, aos sábados na Lapa e aos domingos em Bangu. Esses encontros reúnem músicos, grafiteiros, pichadores, esportistas urbanos, poetas e atores, provando que qualquer forma de arte vale a pena.

O rapper trabalha com áreas periféricas, com foco nos encontros culturais em favelas. O público, que chega a cerca de mil pessoas, entre jovens e adultos, possibilita ainda um incremento à renda local, com a venda de produtos.

– Montamos brechós e damos espaço aos moradores para montar tendinhas e expor seus produtos ou vender bebidas. Assim, ajudamos a reforçar sua renda familiar – contou Sahell.

A entrada de público de fora é um ponto que ele vem administrando. Diz que costuma avisar aos traficantes os dias da roda, afastando as bocas-de-fumo: “Às vezes é tenso, já tive revólver apontado na cara”.

Outro desafio é ampliar a presença feminina no universo da cultura urbana. De acordo com os produtores, as mulheres se sentem hostilizadas na hora de rimar nas rodas ou de participar das batalhas. Na Batalha do Real (leia mais abaixo), a proporção é de 12 homens para quatro mulheres. Nas comunidades, muitas mulheres são reprimidas por frequentarem as rodas culturais. Parceiras da CCRC fazem um trabalho de conscientização conversando com as mulheres em favelas dominadas pelo tráfico ou pela milícia – que, segundo Sahell, “é pior do que comunidade de tráfico”.

– É preciso que uma mulher fale com as mulheres de lá, que introduza o feminismo e que explique o que esse movimento cultural da comunidade pode refletir de positivo para ela. É preciso que elas vejam que podem se envolver. Com o tempo, temos visto as mulheres se aproximando, chegando nas rodas e nas reuniões semanais. Porque os homens estão lá o tempo todo. Mas e as mães e as esposas? Queremos que elas participem também.

Os gastos de produção e infraestrutura são custeados por doações. Segundo ele, muito do que precisa é conseguido “no amor”, com a ajuda de amigos designers, músicos e técnicos de som. Além dessas doações, os produtores das rodas também vendem bebidas e produtos, para financiar a infraestrutura dos encontros e pagar o cachê, transporte e alimentação para os artistas convidados. Sahell também falou da dificuldade de captar recurso por meio de editais:

– Nestes seis anos, o edital sou eu. Prefiro muito mais o incentivo privado. Pode vir de um comerciante de gás ou de um dono de depósito de bebida na favela. A captação do recurso com os editais é sempre mais burocrática. No boca a boca eu mostro numericamente que as coisas dão certo, e os caras acreditam. Se cada comerciante da favela investe mil reais e eu arrumo 10 investidores, já tenho bastante dinheiro. Meu primeiro evento eu fiz com R$ 5. Com R$10 mil a gente faz uma festa bonitona.

Batalha do Real

Cesar Schwenk é produtor da Batalha do Real, que desde 2003 promove competições entre MCs no Rio de Janeiro, com temporadas anuais. Depois de dois anos parada, a Batalha voltou este ano, graças ao edital Vivarte, da Secretaria Municipal de Cultura. A disputa será entre 16 MCs e terá a final no Circo Voador, no dia 23 de novembro. Schwenk falou sobre os obstáculos encontrados na captação de recursos que, segundo ele, demonstram o medo de que aumentem o estímulo ao pensamento crítico através da arte. Para ele, o Hip Hop e o Rap são instrumentos de mudança e de propagação de conhecimento, que servem como estrutura para a comunidade romper com as barreiras encontradas.

– O sistema não gosta de projetos que levam a questionamentos e que quebram a ordem natural das coisas. Não gosta que as pessoas acreditem que são independentes e que possam criar sua própria cena cultural. Como quebramos essas barreiras e vencemos isso? Quando a gente manda para um jornal um evento na Penha, falam para gente “Na Penha? Para que divulgar isso?”. Aí você manda uma foto dos MCs e dizem “Não tem MC branco?”. Podem reparar, não sai foto de MC negro no jornal – disse o produtor, aplaudido pela plateia.

Schwenk, produtor da Batalha do Real

Festa Xarpi

O universo da pichação também foi abordado na conversa. Kel Pastore é a criadora e produtora da festa XARPI (pichar ao contrário), que há seis anos convida DJs e MCs para tocarem rap e hip hop, além de reproduzir vídeos sobre pichações e disponibilizar um mural para os convidados deixarem suas assinaturas. Com mais de 20 edições, a festa costuma ser realizada mensalmente em espaços variados, como Circo Voador e Fosfobox. Ela alterna atrações famosas e iniciantes no ramo e já recebeu Criolo, Racionais e Emicida, entre outros nomes influentes na cena. A XARPI tem uma loja virtual de blusas e bonés, expostos no encontro.

Kel era frequentadora da Batalha do Real, onde aprendeu muito sobre a cultura de rua e percebeu que queria fazer festas. Familiares e amigos estranharam a tentativa de ganhar dinheiro com a técnica incompreendida e, ainda por cima, fora da lei.

As pessoas veem a pichação como rabisco, e não é. Tinham que falar sobre isso nas escolas, para acabar de vez com o preconceito. Temos que explicar por que as pessoas picham. É um protesto, por mais que não tenha frases que expressem isso. A pichação no Rio começou na Ditadura e tinha a intenção de reivindicar. Os jovens fazem isso porque não têm outras motivações, já que nas comunidades eles não têm lazer. Os pichadores estão gritando alguma coisa que está dentro deles.

­Adepta da prática desde garota, a produtora abordou a linha tênue entre grafite e pichação. O primeiro tem se tornado cada vez mais popular, enquanto o segundo é reprimido e apagado frequentemente pelo poder público.

A pichação é muito mais transgressora, mas o Brasil é o único país a separar um do outro. O governo e a mídia colocam um como bonito e o outro como feio. Lá fora, por mais lindo que seja, o grafite é proibido, e aqui nós temos uma lei que permite a prática. Mas os dois têm a mesma origem e podem estar misturados, então como diferenciá-los? – questionou Kel.

Para Kel, a recente mudança de posicionamento do governo com investimentos em painéis de grafite é positiva, porque possibilita que muitos grafiteiros sejam pagos pelas suas criações e possam viver disso. Schwenk, por sua vez, criticou a origem dessas iniciativas, principalmente no Rio de Janeiro, que já era uma das cidades mais grafitadas no mundo.

A valorização é sempre válida, mas o apoio vem de fora para dentro. O governo viu que essa arte, nos outros países, está sendo cada vez mais reconhecida, e percebeu que os maiores grafiteiros do mundo são brasileiros. Aí fazem o Porto Maravilha. Acho que a questão social é bem maior, e envolve um problema de identidade brasileira, que não é assumida. Esperamos vir um aval de fora para valorizarmos algo que já fazemos há muito tempo.

Kel, pichadora e produtora da festa XARPI

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