EUA: divisão interna aguça incertezas sobre o governo Trump
10/11/2016 16:46
Gustavo Côrtes

Para analistas, maioria parlamentar aduba risco de quebra de acordos comerciais e ambientais

As posições protecionistas de Donald Trump impulsionaram, ao lado da rejeição expressiva à concorrente democrata Hilary Clinton, a surpreendente arrancada nas urnas americanas, avaliam os analistas. Embora parte delas não passe de bravatas de campanha, o mundo acordou nesta quarta-feira sob uma enorme interrogação sobre os desdobramentos práticos do discurso carregado de protecionismo e xenofobia a partir de 20 de janeiro, quando o bem-sucedido empresário assumirá a cadeira ocupada nos últimos oito anos por Barak Obama. O desprezo e a desconfiança que acompanharam esse fenômeno eleitoral desde o início das prévias do partido Republicano transformam-se em vastas preocupações alusivas aos rumos da economia e da diplomacia globais – sinalizadas na imediata turbulência do mercado financeiro seguida ao anúncio da vitória de Trump.

Nem os craques em relações exteriores ousam projetar a extensão e o calibre dos muros de naturezas variadas prometidos pelo republicano no mais acirrado Fla-Flu eleitoral da história recente americana. Uma dos maiores, senão o maior temor da comunidade internacional remete ao risco de o novo presidente dos Estados Unidos, tonificado por um apoio majoritário no Congresso, descumprir acordos e tratados como o Transpacífico (TPP), assinado com o Japão e mais dez países, e o Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafca), firmado com o México e o Canadá. Ao provável pacote protecionista, soma-se a previsão de barreiras tarifárias prometidas na campanha como um tônico revigorante à indústria americana.

Embora analistas ponderem que o furacão Trump e, em particular, a ventania protecionista anunciada tendem a amansar diante do pragmatismo econômico  – sistematicamente superior a rompantes populistas, xenófobos ou mesmo a desavenças diplomáticas – e diante também dos limites resguardados por forças institucionais, eles reconhecem que a nova direção da Casa Branca, sustentada pela maioria parlamentar, reúne poder suficiente para  consumar uma parcela nada desprezível do protecionismo alardeado na corrida presidencial. O risco de quebra ou revisão de acordos se abate, inclusive, sobre a área ambiental. Assim indicam a apreensão predominante nos corredores da Conferência das Nações Unidas para o Clima (COP22), em Marraquexe, que tenta dar régua e compasso aos compromissos ambientais firmados no encontro anterior, há um ano, em Paris. Os participantes temem que o sucessor de Obama prejudique os avanços transnacionais costurados na capital francesa.

A preocupação ambiental é um das gasolinas que abastecem a forte resistência interna ao presidente, refletida, por exemplo, em manifestações nas cidades de Nova York e Boston. Em que pese a força política amparada pela maioria parlamentar, Donal Trump deixa a campanha para embarcar num país dividido. Até que ponto a cisão tende a conter ímpetos xenófobos e protecionistas, ou, pelo contrário, a aguçá-los, insinua-se uma pergunta de um milhão de dólares. Para o professor de Relações Internacionais da PUC-Rio Paulo Wrobel, este será o principal desafio do republicano recém-eleito:

– Essa divisão política impossibilita a chegada de um consenso, de uma agenda comum. O que talvez facilite seja o domínio do Partido Republicano no Legislativo. A falta de domínio da Câmara e do Senado foi o grande problema do governo Obama.

O também professor de Relações Internacionais Roberto Moll, do IFF, ressalta observa que Trump encontra resistência até no próprio partido, embora a vitória eleitoral tenda a dissipá-la, em nome do pragmatismo de governo. Ainda assim, Moll prevê tensões internas – no país e entre os próprios republicanos – que podem tornar a gestão de Trump mais imprevisível e volátil. Figuras importantes do partido, como Jeb Bush, derrotado nas prévias pelo empresário, chegaram a insinuar que votariam em Hillary Clinton, recorda o professor:

– Embora Trump vá contar com maioria republicana no legislativo, não há garantias de vida fácil, pois o partido não o apoia maciçamente. Ele terá que conquistar a confiança de setores importantes, inclusive do mercado financeiro.

Já para o cientista político da UFF Maurício Dias, há uma tendência ao apaziguamento com o início do governo Trump. Segundo ele, a ampliação da vantagem dos republicanos no Legislativo será decisiva à governabilidade.

– O poder é aglutinador. A campanha foi um momento de radicalização dos discursos. Tenho certeza de que mesmo os quadros do Partido Republicano insatisfeitos com a escolha de Trump vão se unir em torno de uma agenda comum. Todo esse ambiente de confronto foi criado pelas campanhas vergonhosas, calcadas em escândalos e não em discussões de temas importantes para a sociedade americana, e pela campanha aberta feita pelos meios de comunicação contra Trump.

Um das principais fontes de divisão entre os americanos refere-se à política externa. Enquanto Trump assumiu na campanha uma posição de fechamento, Hillary se mostrou simpática à globalização. Para o republicano, os Estados Unidos precisam melhorar a inserção na economia global, como indica, na opinião dele, a relação comercial com a China, “desfavorável aos interesses americanos”. O discurso falou alto a desempregados e trabalhadores da indústria receosos em perder empregos para concorrentes de outros países, como México e índia.

– No campo econômico, a ideia de Trump é reduzir a taxação de grandes empresas para aumentar o investimento do setor privado e estimular a produção de bens de consumo no território americano. Para isso, ele deixará de assinar tratados e tentará renegociar aqueles em vigor. Tentará também, na relação com a China, obter condições que protejam a economia americana – prevê.

Ainda de acordo com Dias, as ideias de Trump “refletem os anseios de uma parcela da população americana que perdeu com a globalização e se sente insegura diante da possibilidade de seus filhos não viverem melhor no futuro”. O professor argumenta:

– A globalização gerou muito desemprego nos Estados Unidos. E, para Trump, ou os EUA impõe barreiras ou a China vira a fábrica do mundo. Ele terá condições de negociar, já que os americanos são grandes compradores de produtos chineses.

O alcance do protecionismo de Trump não dependerá só dele. Apesar da na maior republicana, não se pode precisar se o Senado irá encampar o posicionamento externo do presidente, ponderam analistas. Eles reconhecem, contudo, a habilidade de Trump como negociador.

– Trump acha que boa parte dos acordos internacionais privilegiou a lógica da globalização em detrimento dos interesses americanos. Sob esse ponto de vista, ele tem uma postura bem mais à esquerda que Hillary, defensora de uma maior abertura econômica. Mas, ao assumir efetivamente a Casa Branca, Trump tende a ter uma conduta mais moderada, até porque, nos Estados Unidos, as políticas econômica e externa são feitas com uma participação muito expressiva do Senado. Ou seja, é preciso atingir consenso político em torno de questões como essas – ressalta Dias – Além disso, existem interesses poderosos de blocos econômicos. É difícil se opor ao sistema o tempo inteiro. Mas Trump se notabilizou como um hábil negociador no setor privado. Ele tentará conseguir novas concessões na relação com a China para proteger a economia americana e manter empregos industriais nos Estados Unidos.

Fora do contexto econômico, o discurso de Trump em torno da atuação dos Estados Unidos no mundo é menos intervencionista que o de Hillary. Contudo, algumas declarações provocaram incertezas mundo afora, como a pretensa aproximação a Rússia, correspondida por Putin; a neutralidade no combate a programas nucleares e a oposição a acordos climáticos que “prejudiquem os Estados Unidos”. Para Moll, “o descumprimento de contratos internacionais e a ausência dos Estados Unidos em futuros acordos ambientais pode desequilibrar a política internacional”:

– Caso consumada, a quebra de acordos e tratados vai gerar desconfiança da comunidade internacional em relação aos Estados Unidos. Trump prega a desvinculação dos EUA de órgãos como a Otan e a ONU. Esse espaço poderia ser ocupado por outra grande potência, como Russia ou China. O problema é que esses países também não têm o costume receber bem tratados como os que Trump critica. Outro problema é que tratados e acordos sem a participação dos Estados Unidos não vingaram, como o Tratado de Kyoto.  E Trump diz que os Estados Unidos devem se manter neutros em questões que não os afetam diretamente, como a dos programas nucleares.

Dias não descarta a possibilidade de investidas militares diretas dos Estados Unidos durante o governo Trump, apesar da crítica à atuação do país no Iraque e no Afeganistão. Para Moll, o novo presidente americano não hesitará em mudar de posição caso enxergue uma “ameaça externa”:

– Trump é isolacionista, mas pragmático. Se avaliar que os Estados Unidos estão ameaçados ele responderá de maneira mais enérgica e agressiva. Portanto, não diria que a relação dele com Putin, por exemplo, será tão amistosa quanto alguns preveem, já que Trump não tem interesse em intervir diretamente na Síria, governada por Assad, um dos principais aliados de Putin.

Diferentemente de questões relativas à economia global e a conflitos internacionais, largamente discutidos na campanha, a América Latina foi lembrada, basicamente, quando se discutiu imigração. Para Dias, as ideias de Trump neste ponto, “ainda que não raramente exageradas, como na sugestão de um muro na fronteira com o México”, cumprem uma lógica à qual se alinha boa parte dos americanos:

A imigração vem, de fato, gerando problemas sociais e de segurança, na medida em que há mais de 11 milhões de imigrantes ilegais nos Estados Unidos. A maioria sai de países pobres e em condições econômicas adversas. Quando chegam aos Estados Unidos, essa população não tem como conseguir emprego e, muitas vezes, recorre à criminalidade. Os Estados Unidos são o único país do mundo que aceita imigrantes ilegais

Em relação ao Brasil, os analistas carregam também mais dúvida do que certezas sobre os efeitos da nova direção da Casa Branca no xadrez político e econômico. Mantido o posicionamento de campanha, Moll não prevê dias fáceis aos países exportadores para os Estados Unidos. 

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