Boa Vista se dobra à maré de venezuelanos em fuga da crise
19/12/2016 10:00
Cecília Bueno

Gabinete Integrado de Gestão Migratória (GIGM) trabalha para reforçar unidades hospitalares sobrecarregadas com a demanda crescente de atendimentos

Em meados de 2013, uma equipe de jornalistas saía de um restaurante em Maturín, na Venezuela, quando foi atacada por um grupo de milicianos. Jonathan Madrid, de 32 anos, na época era dono de uma produtora que fazia reportagens independentes para rádio e para TV expondo a condição do país, que vive uma crise econômica e política sem precedentes.  Afligida pela maior inflação do mundo, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a população venezuelana enfrenta a escassez de itens essenciais e remédios, as longas filas nos supermercados, o racionamento de energia e o aumento da criminalidade. O governo de Nicolás Maduro ficou conhecido na mídia internacional pela censura à imprensa e à população, e pelas dezenas de presos políticos. A equipe de Jonathan era alvo de constantes ameaças nas redes sociais. O episódio no restaurante foi o estopim para que ele decidisse que precisava sair de seu país. Largou a produtora e foi para Boa Vista, em abril de 2014, tentar uma nova vida. A história de Jonathan é um retrato da história de milhares de venezuelanos que atravessam a fronteira brasileira em busca de melhores condições de vida. Segundo a Polícia Federal, entre outubro de 2015 e o mesmo mês em 2016, 58.463 venezuelanos entraram no Brasil, via Pacaraima, Roraima. Tal número é apenas um pedaço de uma crise migratória muito maior. No mundo, 65 milhões de pessoas se deslocam de seus países de origem, no que a Organização das Nações Unidas (ONU) considerou como a maior crise humanitária desde a 2ª Guerra Mundial.

Imigrantes venezuelanos e cubanos nas proximidades da Rodoviária Internacional de Boa Vista. Foto: Relatório Situacional sobre fluxo migratório na cidade de Boa Vista/ Defesa Civil de Roraima

Jonathan deixou seu currículo em algumas produtoras de Boa Vista, e recebeu a oferta, alguns meses depois, para trabalhar na campanha do então candidato a deputado federal, Alex Ladislaum – que concorreu nas eleições municipais desse ano ao cargo de prefeito na capital roraimense. Com o fim da corrida eleitoral, ele foi chamado para produzir o programa de TV da mulher de Ladislaum e trabalha lá desde então.

Jonathan voltou em novembro para Venezuela e disse à mulher e aos dois filhos, de 7 e 4 anos: “Arruma tudo que a gente vai embora”. Na fronteira entre os dois países, em Pacaraima, a família contou com ajuda de um amigo brasileiro. Do carro, ele avisou à Polícia Federal que todos eram brasileiros e passaram direto na guarita. A fronteira seca entre Brasil e Venezuela é de fácil travessia e difícil controle. Uma média de 75 venezuelanos por dia chegam ao país via Pacaraima. 

Foto: Arquivo Pessoal

O município no norte de Roraima está situado a 15 km de distância de Santa Elena de Uiarén, na Venezuela. Pacaraima tornou-se porta de entrada para venezuelanos que vão para outras regiões do país – a maioria para o Norte –, e de outros que vão comprar alimentos, utilizar dos serviços dos postos de saúde e trabalhar no mercado informal. A preocupação da prefeitura e da população local com a chegada crescente de venezuelanos aumentou com o surgimento de outro grupo: os indígenas da etnia Warao. Vindos do Amazonas venezuelano, a tribo nômade começou a aparecer no município em junho desse ano.

– Vivem nas ruas pedindo esmola aos locais e dizendo que não tem condições de trabalho no país vizinho. A população se incomoda com a movimentação, mas se preocupa com as crianças e os idosos dormindo nas ruas da cidade – diz a secretária de Assistência Social de Pacaraima Socorro Maria.

Fonte: Relatório Situacional sobre os imigrantes na cidade de Pacaraima – Defesa Civil de Roraima

À noite, o município conhecido como “Polo Norte de Roraima” pode atingir temperaturas muito baixas. Localizado em uma região de montanhas e serras, está a 920m de altitude, e a temperatura média anual é 15ºC. 

Socorro conta que, com a superlotação da cidade, os serviços municipais ficaram sobrecarregados, principalmente o sistema público de saúde. Além do aumento de números de atendimentos de venezuelanos, existe a preocupação com a importação de doenças endêmicas.

A escassez de medicamentos e insumos médicos no país vizinho fez com que o Parlamento declarasse uma “crise humanitária em saúde”. Doenças como Leishmaniose, Tuberculose e HIV/Aids estão na lista de enfermidades mais comuns entre os migrantes que buscam tratamento em Roraima. Segundo dados da Defesa Civil de Roraima, os casos de malária tiveram aumento de 273% entre setembro de 2015 e o mesmo mês em 2016.

Em outubro, o Governo do Estado de Roraima criou o Gabinete Integrado de Gestão Migratória (GIGM), que através do diálogo entre as instâncias municipais, estaduais e federais, pretende dar assistência aos migrantes econômicos venezuelanos e conter os aspectos negativos do intenso fluxo migratório atual. O primeiro passo foi a criação de um Centro de Atendimento ao Migrante em Pacaraima, que realiza diariamente um levantamento sobre o fluxo de estrangeiros. Os relatórios mostram que 56% dos venezuelanos entram no país como turista.

Segundo o secretário de Defesa Cívil Doriedson Ribeiro, o GIGM vai trabalhar para reforçar a assistência social, a segurança e a educação nas cidades. Todavia, ele reforça, “com o aumento nas demandas de atendimentos em hospitais, a saúde torna-se a prioridade inicial”:

– Estamos trabalhando em um plano de reforço das unidades hospitalares. Temos um problema, tanto com a natalidade, quando com a mortalidade dos migrantes. Houve um aumento expressivo de partos sendo realizados, às vezes, até sem a documentação da gestante. Em casos de mortes, o Estado brasileiro não pode tomar nenhuma providência sobre o corpo. Quando o venezuelano morre e não tem família no país, vai para o IML (Instituto Médico Legal) e, se ninguém aparecer para reconhecê-lo após 90 dias, tem que ser enterrado por indigência.

Tal conjuntura se agrava com o aumento da violência­ e prostituição nas cidades. O número de ocorrências de violência no estado aumentou em 379%. Segundo a Secretaria de Segurança de Roraima, o número de ocorrências contabilizadas no interior e na capital, em 2015, somavam 58. Em 2016, o número cresceu para 220. O sistema escolar também se sobrecarrega com a chegada dos imigrantes. As matrículas em Pacaraima em 2016 ultrapassaram em 402% as matrículas em 2015, segundo o Censo Escolar.

Fonte: Relatório Situacional sobre os imigrantes na cidade de Pacaraima – Defesa Civil de Roraima

– Chega um momento em que poder público não consegue acompanhar o crescimento populacional. Não temos capacidade de sustentar toda essa população. É preciso um reforço do Governo Federal e dos ministérios – diz Ribeiro.

Roraima é um estado composto predominante por migrantes econômicos. Mais da metade de Boa Vista – 53,7% – veio de outros estados. Segundo João Carlos Jarochinski, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e especialista em questões fronteiriças, o Brasil tem menos de 1% da população constituída por imigrantes, enquanto a média mundial é de 3,3 %. Em Boa Vista não há nenhum órgão de ajuda a refugiados. Para ele, a sociedade civil precisa se atentar para a questão migratória:

– Falam que o brasileiro é receptivo, mas é receptivo para quem? Os poderes estaduais e municipais precisam começar a pensar em políticas de integração. Não exploram a migração pelos aspectos positivos. As cidades mais dinâmicas do mundo são a que tem maior número de migrantes. As iniciativas de acolhimento ainda ficam restritas aos segmentos religiosos.

Muitos migrantes vão para capital amazona em busca de emprego na Zona Franca de Manaus. Oito venezuelanos estão abrigados no Serviço Pastoral do Migrante, em Manaus, entidade religiosa que também acolhe 14 cubanos e 45 haitianos.

As casas de passagem da Pastoral oferecem aos imigrantes café da manhã e jantar, para que durante o dia possam procurar por emprego. Além disso, disponibilizam atendimento psicológico e aulas de português.

Padre Valdecir Molinari, coordenador da Pastoral, conta que a primeira leva de imigrantes vindos pela Venezuela foi a de haitianos – em 2010, após o terremoto que açoitou o país caribenho. Por conta do fluxo extenso de migrantes, a Arquidiocese de Manaus montou um programa de acolhimento de estrangeiros. Segundo o Padre Molinari, pela quantidade de venezuelanos na cidade, o número de acolhimento da entidade é muito pequeno:

– A Pastoral já foi uma referência para os migrantes e chegou a acolher cerca de 95% dos haitianos que passaram por Manaus. Com o auxílio de outras entidades, a casa abrigou 1300 deles. Apesar do número grande de haitianos que chegavam, a absorção do mercado frigorífero era grande na época, e logo eles saíam para trabalhar e refazer suas vidas. Hoje, o número de imigrantes que chega aqui é menor, mas com a crise econômica que o país enfrenta, eles não conseguem sair. O período é de crise de desemprego no Brasil também.

A família de Jonathan ficou cerca de um ano ilegal. No dia 28 de agosto de 2015, ele entrou com pedido de refúgio no Comitê Nacional para Refugiados (Conare), sob a justificativa de não poder exercer a profissão de comunicador na Venezuela. Eles ainda estão esperando a resposta do Conare. De 2015 para 2016, houve um aumento de 737% nos pedidos de refúgio por venezuelanos. De acordo com a Polícia Federal, o número passou de 234 para 1725. Em contrapartida, o crescimento das deportações foi ainda maior: 834% – de 54 em 2015 foi para 445 em 2016.

Enquanto o processo anda, Jonathan recebe um protocolo de refúgio em papel. Com esse documento, pôde tirar CPF e carteira de trabalho. Em agosto de 2016, ele voltou na PF e, sem obter a reposta sobre o protocolo, renovaram-no por mais um ano. Dentro desse prazo de validade, ele tem todos os direitos brasileiros.

Segundo a lei de refugiados brasileira, somente aqueles que foram perseguidos por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opiniões políticas ou por motivos de generalizada violação de direitos humanos podem acolher-se à proteção brasileira. Jarochinski alerta que estrangeiros não regularizados ficam sujeitos à exploração de trabalho e ao tráfico de pessoas:

Fonte: Fonte: Relatório Situacional sobre os imigrantes na cidade de Pacaraima – Defesa Civil de Roraima

– Os venezuelanos estão em um alto grau de vulnerabilidade social.  Em Boa Vista, muitas mulheres estão sendo exploradas sexualmente em troca de comida. Muitos patrões não cumprem as demandas trabalhistas. O migrante não tem influência política porque não vota. Sendo assim, ele deixa de ser prioridade e não sobra espaço para esse tipo de debate na sociedade.

Todos os dias, Jonathan recebe alguma mensagem no Facebook de venezuelanos pedindo ajuda para sair do país. Ele já acolheu sete colegas em sua casa.

– Falo para eles virem, eles ficam em minha casa por um mês, eu os banco e depois eles se viram. O foco deles é em aprender o idioma e procurar emprego em qualquer lugar. Mas o problema principal é sempre o idioma, a insegurança que gera estar em um país onde ninguém te entende – diz Jonathan. Ele explica que o Brasil é para a maioria dos países da América do Sul um país desconhecido:

 – A gente sabe que o Brasil existe, mas ninguém conhece muito a cultura brasileira por causa da barreira linguística.   

Além de abrigar colegas em sua casa, Jonathan e a esposa dão aulas de português para outros colegas latinos que estão na cidade. Aos domingos, o casal se reúne na casa de um de seus doze alunos e, além de ensinar a língua, fazem orações e assessoram os colegas para entrar com o pedido de refúgio.

–Todos ainda esperam a resposta da Conare, mas já estão regularizados. Levamos para eles uma palavra de esperança, oramos, ajudamos como pudermos. Porque aqui é tudo muito confuso, sabe, é uma dificuldade. Eles não acham emprego, não entendem a língua. Aqui em Boa Vista tem um certo preconceito com os estrangeiros.

Jonathan aprendeu a falar português em três meses. Em seu primeiro dia de trabalho, começou a descarregar os cartões de memória com os vídeos da campanha de Landislaum e teve que entender o que estava sendo falado para poder editar e legendar os vídeos. Ele atribui a um milagre divino sua rapidez para aprender a língua:

– Eu orava todos os dias. Pedia para Deus me ajudar. Graças a Ele, quando cheguei aqui não tive contato com ninguém que falasse espanhol. Então foi português 24h por dia. Às vezes, eu pedia que alguém me ajudasse com algumas palavras, pesquisava no Google Tradutor. Eu entendia o que se dizia, mas não sabia escrever. Então escrevia errado como eu ouvia e, automaticamente, o Google fazia a tradução.

Aos domingos de manhã, ele e família frequentam uma igreja, onde Jonathan, que já morou nos Estados Unidos, faz a tradução do culto em português para inglês para os nigerianos e haitianos presentes.

Quando Jonathan veio para o Brasil, pretendia seguir com sua carreira de músico. Na Venezuela, além da produtora, tinha uma banda de música gospel, Jubileo, onde era guitarrista. A banda, formada há 6 anos, foi se desmanchando com a saída dos integrantes do país em busca de melhores condições de vida. Jonathan achou que a carreira musical seria mais fácil por conta do idioma:

–Se eu cantar em espanhol, as pessoas podem curtir. Seria difícil trabalhar com audiovisual no Brasil e não entender, nem falar, nem ler o português. Além disso, não queria mais trabalhar em comunicação depois do que me aconteceu. A comunicação é uma profissão que se faz por paixão. Mas se você não pode falar, a gente fica com medo e com insegurança.

A música acabou ficando em segundo plano na vida de Jonathan. Como a banda está separada, ele faz shows com playback. Há três meses, trabalha na TV Record. À tarde, segue para a produtora. Nos finais de semana, também trabalha em projetos freelancers.  Os sábados são os dias mais tranquilos. Acorda cedo, vai para o mercado e volta para fazer um churrasco para a família.

Mora em uma casa com quintal, onde as crianças podem andar de bicicleta. “O que incomoda é o sol. Aqui faz um calor desgraçado”, reclama. Depois de dois anos, conseguiu comprar um ar condicionado. Os filhos frequentam uma escola pública local. A mulher trabalha em casa e faz biscui sob encomendas. Apesar de ter uma vida tranquila, Jonathan diz que às vezes pensa em sair de Boa Vista e ir para outra cidade ou até mesmo para outro país:

 – Sinto falta da música e da alegria da Venezuela. De celebrar, de reunir com os amigos, de compartilhar momentos, aqui não tem muito isso. Boa Vista é uma cidade muito arrumada e tudo mais. Mas eu acho que o povo é muito regredido culturalmente. As pessoas daqui são muito fechadas, repetitivas para tudo, não gostam de nada novo. Eu sinto que eu fico muito aqui vou acabar na mesma posição deles, cair na mesmice.

Apesar da saudade, a Venezuela não se está nos planos do músico, cujo maior sonho hoje é gravar um segundo disco:

– Em comparação com a Venezuela, aqui é o paraíso ainda. As pessoas lá estão morrendo de fome. Vejo fotos de amigos e familiares na internet. Estão muito fracos, com aparência de doente, emagreceram muito. Se a gente olha a crise na Venezuela há 5 anos atrás, a gente acha que o Brasil é primeiro mundo. Falta muito pouco para comparar a Venezuela com a África, com a Coreia do Sul.  Não penso em voltar. Nunca. Eu perdi o meu amor pelo meu país. Sendo otimista, a gente sabe que não vai passar vinte, trinta anos para situação de lá melhorar. E daqui a trinta anos eu já refiz minha vida.

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