Pesquisa mostra o que mudou nas favelas cariocas com a regularização da luz elétrica
17/12/2016 13:17
Gabriela de Vicq

Pesquisadora italiana Francesca Piló, que estudou impactos no acesso à energia elétrica no Cantagalo e no Santa Marta, debate as questões políticas envolvidas no processo e questiona a validade do discurso de integração.

Agência Brasil

O acesso à energia elétrica nas favelas cariocas, a partir de 2008, teve um papel importante na reconfiguração da esfera sócio-política. Realizada depois da instalação das UPPS, a regularização transformou as relações de poder entre a população, o Estado e o mercado, contribuindo para a integração urbana das comunidades. A italiana Francesca Piló teve esse processo como tema de sua tese, escrevendo A regularização de favelas pela eletricidade: Um serviço entre Estado, mercado e cidadania. Ela realizou seu trabalho de campo entre 2009 e 2011, no Cantagalo e no Santa Marta. Durante 7 meses, fez cerca de 98 entrevistas com moradores e ofertantes de energia.

Em 2008, a instalação das UPPs foi amparada por um discurso de integração das favelas. O objetivo era inserir o território na sociedade, além de formalizar as atividades econômicas e os serviços públicos – antes sob a responsabilidade do tráfico. Também naquele ano, a Light começou a controlar a energia nas comunidades com a instalação de medidores eletrônicos. Com isso, pretendia reduzir os “gatos” – ligações clandestinas de energia antes da regularização.

Segundo Francesca, entre 1905 e 1950, o acesso informal à rede elétrica era arranjado pelos próprios moradores e era tolerado pelo poder público. Entre 1960 e 1970, já no período da ditadura militar, as “comissões de luz” controlavam a energia elétrica – fornecida em troca de apoio político, em redes clientelistas. A partir do final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, com a redemocratização do país e a nacionalização da Light, em 1979, o governo federal decidiu eletrificar oficialmente as favelas. Foi o momento de garantir aos moradores seus direitos aos serviços públicos, ainda que morassem em territórios informais. A regularização, para Francesca, ainda permitiu que as relações político-econômicas baseadas no controle da rede elétrica fossem restruturadas.

Em meio ao processo de redemocratização do país nos anos 80, a PUC-Rio criou o Movimento Universidade a Serviço do Povo (Musp), com a intenção de suprir necessidades de comunidades através de competências da universidade. Alunos e professores atuaram em cerca de 30 favelas, entre elas a Santa Marta, onde morava o vice-reitor acadêmico Pe. Agostinho Castejón S.J. Uma assembleia da comunidade cobrou da Light que instalassem uma rede elétrica, a fim de garantir luz a cada barraco sem o risco dos gatos – na época controlados pela Comissão da Luz, que explorava os moradores em troca do serviço. A empresa aceitou entrar no morro, com a condição de que os reivindicadores entregassem uma planta, com um mapa topográfico localizando cada barraco, além da renomeação de cada viela da favela. Os integrantes da Musp – com esforços dos Departamentos de Geografia, Engenharia Civil e Elétrica – abraçaram o desafio e entregaram, em menos de 30 dias, o mapa completo, fazendo com que a Light cumprisse o combinado e instalasse a energia.

Francesca Piló. Foto de Carolina Ernst

A pesquisadora escolheu esse objeto de estudo depois de visitar a cidade carioca. O contato com a realidade das comunidades, além dos poucos estudos sobre a regularização da energia nesses locais, despertou seu interesse sobre o tema:

– Um ano e meio antes de começar minha pesquisa de doutorado eu vim para uma temporada no Rio, em um intercâmbio pela UFRJ. Percebi as condições precárias nas favelas e como isso contribuía para uma visão dicotômica da cidade. A compreensão de um ponto de vista político dessa configuração técnica da rede foi uma das razões que me encorajou a começar essa pesquisa.

Durante os dois primeiros anos, o método de cobrança instituído pela Light seguia uma lógica progressiva. O objetivo era habituar o pagamento pelo consumo, introduzindo a relação comercial gradualmente. Ao tentarem encorajar a mudança, iam aumentando o teto de consumo com o passar dos meses. Esse método não foi bem aceito pela população devido à falta de informação. Os moradores viam as contas aumentando e não entendiam o motivo, pois achavam que os primeiros preços eram uma espécie de “tarifa social permanente”.

– As pessoas começaram pagando por quase 80 quilowatt-hora, mesmo consumindo acima disso. No mês seguinte, 100 kWh. Até chegar ao ponto de 200 kWh. O limite de consumo foi uma tentativa de respeitar a capacidade de pagamento dos moradores. Mas esse tipo de cobrança contribuiu para uma relação de desconfiança, já que eles não entendiam o aumento contínuo das contas.

Francesca explica que o sistema elétrico, nessa situação, pode ser definido como sócio técnico. Isso se dá a partir da ideia de levar um objeto técnico às comunidades, gerando impactos políticos. Tais objetos, segundo a pesquisadora, atribuem papéis a certos tipos de atores, autorizando determinados modos de relação, em um processo de produção no mundo físico e social. Na pesquisa, ela privilegia a esfera sócio-política da regularização ­– questiona se, de fato, a proposta de integrar os moradores da favela à cidade é cumprida.

 – O que me interessa em tudo isso é o discurso que acompanhou o processo, por parte do governo e da empresa, sobre o papel da regularização na integração das favelas e do reconhecimento dos moradores como cidadãos. A empresa privatizada se diz levar cidadania com base em uma relação comercial-contratual, já que esse serviço público é cobrado. Esse processo deveria levar os moradores de favelas a se beneficiarem dos direitos do estatuto de consumidores-clientes, que garantem a qualidade de serviço com igualdade de tratamento.

Para Francesca, a regularização da energia elétrica foi um processo ambivalente. Ao mesmo tempo em que há avanço quanto o reconhecimento dos moradores como cidadãos, surgem novas formas de fragilizá-los por causa da desigualdade. A inclusão, entretanto, foi possível por meio de questões administrativas: os moradores passaram a poder usar a conta de luz como documentação e comprovante de residência, já que nela consta nome completo e endereço. Na conclusão da tese, ela pondera a falta de uma reflexão ampla do papel político da regularização, já que o reconhecimento dos moradores é mais configurado para lógicas comerciais do que políticas.

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