A mulher brasileira do século XXI
06/02/2017 17:27
Mariana Salles

Professoras Carla Rodrigues – que lança a antologia 'Problemas de gênero' – e Luisa Chaves de Melo defendem necessidade de rever divisão de funções femininas ou masculinas na sociedade atual.

Arte: Mariana Salles

A explosão dos movimentos feministas foi nos anos 1960, mas a luta por direitos ainda leva milhares às ruas, como nas manifestações nos Estados Unidos e outros países contra afirmações sexistas do presidente norte-americano Donald Trump. A questão mais atual, porém, vai além da igualdade. Na verdade, questiona justamente isso – que se deva buscar a igualdade. Para a doutora em Filosofia pela PUC-Rio Carla Rodrigues, as mulheres não conseguem se afirmar nem como diferentes, nem como iguais aos homens sem serem inferiorizadas.

– Quando afirmamos a diferença, somos secundarizadas, porque o que é diferente é menor que eu. Quando dizemos que somos iguais, também somos secundarizadas. Ainda que a lei possa afirmá-los como iguais, nós sabemos que não acontece da mesma forma na cultura. Podemos ter salários iguais para funções iguais, e ainda assim as mulheres serem orientadas a trabalhos de menor valor cultural que os homens – afirma Carla, que acaba de organizar a antologia Problemas de gênero, da coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos, da Funarte, com Luciana Borges e Tania Regina Oliveira Ramos.

Há anos pensando a questão a partir das contribuições de autoras como Simone de Beauvoir e Judith Butler, Carla propõe uma viragem no entendimento dos papéis de homens e mulheres na sociedade. No texto “Ainda o problema da diferença sexual”, que apresentou na PUC em 2016, a convite do Departamento de Filosofia, ressalta:

– O que não é natureza é cultura; o que não é cultura é natureza. Porém, como definir natureza, senão pela negação da cultura, e vice-versa? O mesmo ocorre com os sexos. A mulher só se afirma como tal porque não é homem, e não saberíamos o que é um homem se não existisse uma mulher.

Além disso, continua, não há neutralidade, e sim hierarquia: “Assim como a cultura é vista como mais importante que a natureza, o homem é visto como superior à mulher. A desconstrução que deve ser realizada é a dessa hierarquia”.

A função, a atividade e a maternidade

Outra questão que nunca foi fácil para a teoria feminista é a função reprodutora contida na maternidade, comenta a pesquisadora. “Para Beauvoir, ficam designadas à mulher as funções do âmbito natural – parir, amamentar e cuidar –, enquanto as atividades como alimentar, que têm conotação cultural, ficam a cargo do homem”.

A professora Luisa Chaves de Melo, que leciona Cultura Brasileira no Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, comenta também sobre a divisão de papéis nas famílias brasileiras.

– A sociedade brasileira é sexista, o que significa dizer que culturalmente estabelecemos papéis sociais e tarefas bem demarcados para os gêneros, dizendo frases como “isso é coisa de mulher”, “isso é coisa para homem resolver” e duvidando da masculinidade de homens que têm algum comportamento considerado coisa de mulher. Por isso o cuidado da casa e dos filhos é destinado às mulheres, normalmente sem contestação nem divisão de tarefas.

A visão da mulher como mãe em primeiro lugar – e a do pai como o “provedor” da casa – é exposta na rotina da família brasileira. “Se o filho fica doente, quem falta ao trabalho para cuidar dele é a mãe”, comenta a professora Luisa. No Brasil, há uma postura social entranhada de que o trabalho do homem é mais importante que o da mulher, independentemente da função que cada um exerça:

– Questões de trabalho do homem passam à frente da família, mas a mãe não pode se dar ao luxo de fazer o mesmo. Mas filho tem pai e mãe. Os dois devem cuidar igualmente da criança. Tanto no que diz respeito à educação, à imposição dos limites, às broncas, como no que diz respeito aos cuidados diários, como banho, pôr para dormir, escovar os dentes, levar e pegar na escola etc. E, claro, no apoio emocional. Começo a ver pais levando ou buscando filhos nas escolas, mas quem leva a maioria absoluta das crianças é a babá, a avó ou a mãe. Todas mulheres – observa Luisa.

Para Carla Rodrigues, é interessante observar, como comenta Simone de Beauvoir no livro O segundo sexo, que há fêmeas animais que encontram na maternidade uma completa autonomia:

– Por que a mulher não conseguiu fazer da maternidade um pedestal? Mesmo na época em que a maternidade foi mais venerada, a maternidade não permitiu que as mulheres conquistassem o primeiro lugar.

 

Carla Rodrigues em palestra na PUC-Rio. Foto: Mariana Salles

A maternidade, uma grande marca da mulher como um ser natural e não cultural, é um conceito a ser reconsiderado na re-metaforização do feminino. As soluções para a melhor distribuição dos papéis do homem e da mulher na criação de filhos são extensas, e já mostram efeitos em alguns países. A licença-parentalidade, em lugar à licença-maternidade, por exemplo, varia de três meses a três anos, e os pais podem distribuir os dias entre si como preferirem.

Mas o conceito da mãe como a genitora e criadora única do filho persiste no imaginário. Mesmo mulheres pensam que os homens não têm a capacidade de cuidar dos filhos direito, como se as habilidades de mãe surgissem espontaneamente na ausência do cromossomo Y e não tivessem sido aprendidas, alimentando a visão da mulher como um ser exclusivamente natural e dependente do seu instinto.

– Ouço no meu convívio social, com frequência, mulheres falando com naturalidade que seus maridos não fazem essas coisas direito, não têm jeito para cuidar dos filhos. E, ao invés de insistirem, assumem as tarefas, por considerar que só elas sabem fazer. Assim, não dão oportunidade para os maridos aprenderem, e esquecem que elas também não sabiam fazer em algum momento, ou mesmo fazerem do jeito deles. E o pior: afirmam esse exemplo para seus filhos, reproduzindo o sexismo, em vez de corrigi-lo para as novas gerações – lamenta a professora Luisa Melo.

Para ela, a mulher se sente sobrecarregada, mas contribui diretamente para a manutenção dessa realidade quando não deixa o filho entrar na cozinha, recolhe a roupa dele pelo chão, pressupondo que ele não saiba fazer isso só por ser homem. Em contraposição, para a filha, dá brinquedos como bonecas, panelinhas, vassouras. Enquanto a menina aprende desde cedo suas responsabilidades em casa, o homem fica de fora, entendendo que aquilo não lhe pertence.

O papel da mãe – já que, no momento, ainda é ela, sozinha, que cria os filhos –, para Luisa, é tentar dividir as tarefas de casa igualmente desde cedo, independentemente do sexo de seus filhos.

– As crianças (e os pais) têm que aprender que tarefa é tarefa. Todas as crianças têm que ter responsabilidades adequadas à sua faixa etária para contribuir com o ambiente da casa – sugere a professora.

Carla, que lançou Problemas de gênero em fevereiro, propõe que se pense na diferença entre homem e mulher não como uma marca de inferioridade, mas de equivalência e dependência: “Identidades não podem mais ser pensadas como representações sustentadas pela estrutura binária dos sexos”.

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