Marchinhas na cadência do politicamente correto
20/02/2017 16:22
Dóris Duque

Banidas do repertório de blocos, músicas consideradas preconceituosas inspiram debate entre foliões, ativistas e pesquisadores sobre a transgressão do carnaval e o respeito a minorias.

Foto: Diogo maduell

O assunto ganhou força depois que veio a público uma discussão interna do bloco feminista Mulheres Rodadas a respeito de tocar ou não Tropicália, música de Gilberto Gil e Caetano Veloso, por algumas integrantes considerarem pejorativo o termo “mulata”. Chegaram ao consenso de manter a música, por entender que o contexto não era ofensivo. Porém, já não entravam no repertório Maria SapatãoCabeleira do Zezé, O teu cabelo não nega e Mulata Bossa Nova, decisão a que têm aderido outros blocos, como o carioca Cordão do Boitatá e o paulista Espetacular Charanga do França.

Desfile do bloco Mulheres Rodadas. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A jornalista e ativista Débora Thomé, uma das fundadoras do Mulheres Rodadas, afirma que cada bloco tem uma “pauta” e escolhe seu repertório de acordo com o que se propõe.

– A música é um espaço de debate, o carnaval é um espaço de debate e isso não significa cercear a liberdade de quem quer cantar a música que quiser. A gente não é polícia de carnaval – afirma, acrescentando que quem deve dizer se é ofensivo ou não é quem se sentiu ofendido, caso de integrantes do bloco que são ativistas do movimento negro.

Mariana Bispo. Acervo pessoal

Mariana Bispo, estudante de jornalismo na PUC-Rio e integrante do Coletivo Nuvem Negra, lembra que o termo mulata deriva de mula, em analogia à origem mestiça, e para ela o termo é extremamente racista, alem de conter uma carga de hiperssexualização do corpo negro:

– O termo nasceu dos estupros que as escravas negras sofriam de seus senhores. Não pode ser considerado uma exaltação da miscigenação, quando foi uma mistura imposta. Eu nunca aceitei o termo mulata; nós do movimento negro não aceitamos. No século 21 não cabe mais a reprodução desse termo.

Quanto às marchinhas que caíram na berlinda, a ativista apóia os blocos que as excluíram do repertório: "Eu concordo. É algo que está tão dentro da nossa sociedade que não percebemos nem associamos ao racismo, mas é racismo velado".

Outros defendem que o carnaval é uma grande brincadeira e não deve ser politizado. O crítico musical Tárik de Souza – que lançou em 2016 MPBambas 1 e 2 e Sambalanço, a bossa que dança: um mosaico – considera essa revisão dos repertórios um exagero:

– A volta da censura, mesmo que por razões consideradas nobres, é algo assustador. O carnaval tem sempre um sentido anárquico e caricatural – afirma o pesquisador, para quem o verso “a cor não pega”, da música O teu cabelo não nega, de Lamartine Babo, não é racista; ao contrário: “não pega” significaria “não importa”, na expressão popular da época.

Roberto Da Matta. Foto: Isabela Campos

Para o antropólogo Roberto DaMatta, professor da PUC-Rio, os blocos não podem dizer que as músicas são racistas porque não foram escritas com essa intenção: “A maneira de pensar era diferente”, afirma DaMatta, lembrando que o próprio João Roberto Kelly, compositor de algumas das músicas, já disse em entrevistas que não tinha a intenção de ofender ninguém, e defende o aspecto puro e brincalhão do carnaval.

Recordando com nostalgia da época da folia em clubes, quando blocos de rua não eram tão comuns, DaMatta defende que as pessoas não compreendiam as implicações sociais e políticas do que estavam cantando, e essa alteração no comportamento dos foliões é um indicador de uma mudança no espírito carnavalesco: “Essa discussão é importante, mas não tem o menor peso dentro de uma festa em que tudo é brincadeira”, pondera o autor do clássico Carnaval, malandros e heróis. DaMatta lembra que o carnaval tem historicamente um caráter de inversão que permite a quebra e a transgressão dos limites sociais:

– O espírito da festa é desafiar o que as rotinas não permitiam. Mas, se vivemos num mundo onde tudo é permitido, o carnaval perde essa função catártica.

“Acho uma piada quem acha que carnaval não é político”, critica Débora. Para ela, toda manifestação cultural tem uma carga maior ou menor de política, e o carnaval, como o suprassumo da cultura brasileira, tem alto teor de contestação. “As marchinhas, desde que nasceram, vieram como contestação social”, completa.

O músico e jornalista Pedro Paulo Malta, que participou do musical Sassaricando: e o Rio inventou a marchinha, endossa que desde que estouraram as primeiras marchinhas, na década 1920, a política faz parte das letras. Segundo ele, o deboche e humor característicos das músicas carnavalescas são formas de crítica ainda mais contundentes do que o discurso inflamado num palanque.

Está claro que o carnaval tem mudado ao longo do tempo, desde os bailes nos clubes e da troça ingênua com as minorias, evoluindo para os blocos de rua e a representatividade de vários grupos. Em todas as épocas com seu teor político e o deboche crítico característico das marchinhas e sambas-enredo.

– De uns tempos para cá o carnaval vem abrindo espaço para as mais variadas correntes: tem bloco que só toca Raul, outro que canta Beatles, outro que homenageia Roberto Carlos, um que desfila ao som de música sertaneja... Por que não pode existir um bloco alinhado com essas bandeiras, que, aliás, são justíssimas? – indaga o músico Pedro Paulo Malta.

DaMatta completa: “O que você faz no carnaval? Você faz o que você quiser!”.

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