Lula Branco Martins, um jornalista ímpar
16/03/2017 13:17
Gabriela de Vicq

Ex-aluno e professor de Comunicação é lembrado pelo brilhantismo nos textos e nas aulas.

Professor performático, editor perfeccionista, compositor de enredos carnavalescos, mágico, romântico, cantor de ópera, imitador de Chico Buarque, beatlemaníaco, torcedor do América, viciado em Coca-Cola Zero, fazedor de listas, cariocólogo... Em todos esses papéis, uma coisa em comum: a autenticidade. Lula Branco Martins projetava intensidade em tudo o que se propunha fazer. E ele fazia muitas coisas diferentes. Projetos, festas, debates, sites, livros, aulas. Foram muitos os que passaram pela vida de Lula – todos atravessados por ele e tocados de alguma forma pela criatividade e originalidade do jornalista.

O professor Lula na última palestra que organizou na K102 (Gabriela de Vicq)

Foi em 1987 que Lula e Paulo Cesar de Araújo se conheceram, na primeira semana de aula, no primeiro período da faculdade de Jornalismo da PUC. Os dois eram do turno da noite. Chegaram à sala sem saber que não haveria aula. E começaram a conversar na sala vazia. PC era Brizola, Lula era PT. PC gostava de Roberto Carlos, Lula de Chico Buarque. Logo descobriram as primeiras afinidades: os dois eram viciados em Beatles, e já trabalhavam – PC em uma ótica e Lula, no Banco do Brasil.

– O Lula foi meu primeiro amigo na PUC. Achei curioso ele dizer que torcia pelo América. Quando questionei, ele disse que queria ser diferente para ganhar mulheres. Na hora percebi: “que figura”. Desde esse dia, foi uma amizade para sempre, sem nenhuma pausa, intervalo, crise. Nunca mais deixamos de nos falar. Foi um privilégio ter sido amigo dele.

A professora Cássia Chafin se formou na mesma turma, em 1990, e também reencontrou o amigo no Departamento de Comunicação. Nos últimos períodos da graduação, Lula idealizou e lançou o JornalZinho, publicação independente em que era editor, repórter, produtor e “xerocador”, com a ajuda de colaboradores como PC, Daniela Kresch, Alexandre Mansur. PC, que teve seus primeiros textos publicados no veículo, lembra que Lula levava o projeto tão a sério que inventou um prêmio, fazendo um cerimonial em casa e distribuindo troféus de melhor artigo ou reportagem.

Coordenador do Comunicar, o professor e crítico de cinema Miguel Pereira lembra que Lula já se destacava por suas ideias desde a época em que estagiou no Jornal da PUC, em 1989:

– Lula Branco Martins era uma usina de ideias. Depois que entrou para o Projeto Comunicar, além de ser um eficiente repórter e redigir seus textos com personalidade, Lula não parava de sugerir novidades para o Fernando Ferreira e para mim. Gostava de ouvir as nossas histórias da profissão e também do campo cultural, em especial do cinema. Quando as suas ideias, por algum motivo, não eram aceitas, fazia uma cara de muxoxo, mas, pela argumentação, ficava convencido e nos dava razão. Cordial, educado, silencioso, dava a impressão de estar sempre maquinado algo naquela cachola privilegiada.

Lula na redação do Jornal da PUC, cercado pelos colegas Samuel Averburg, Alexandre Mansur e Andréa Magliari Dib Dias​, em 1989. Foto de Lis Horta

O jornalista Mauro Ventura foi um dos primeiros a perceber a qualidade do trabalho de Lula, que conheceu recém-chegado ao Jornal do Brasil, em 1992. Mauro, então editor da Programa, o chamou para ser redator. Passou a editar o Caderno B, e levou Lula. Retornou à Programa, e o puxou novamente. Conviviam por volta de 14 horas diárias, e Mauro já enxergava no parceiro, que vivia com a cabeça transbordando de projetos, uma maneira única de lidar com a vida:

– Ele era uma pessoa sempre em movimento. Inquieto, inconformado, nunca se acomodava. Ele era tão generoso que todo mundo tinha uma dívida de gratidão com ele. Em suas matérias, nada podia sair errado. Imagina se o leitor perdesse seu tempo por culpa de uma informação incorreta? E se isso estragasse o final de semana dele? Ele não podia viver com essa possibilidade.

Mesmo com todo o rigor na apuração, Mauro lembra que o amigo tornava o dia-a-dia da redação uma diversão permanente. Atribui a Lula boa parte do chamado salário-ambiente do JB – já que ganhavam tão pouco, o clima agradável compensava –, com suas imitações de Chico, interpretações de ópera, quedas simuladas no meio do corredor da redação. Era um showman que ajudava a amenizar a dura rotina jornalística.

Mauro Ventura, Lula e seu jornal num restaurante tijucano, no fim dos anos 1990. Acervo pessoal

Luciana Brafman o conheceu no JB, em 2003, quando assumiu a revista Domingo e ele editava a Programa. Vizinhos de mesa, instantaneamente viraram amigos.

– Quando se interessava por um assunto, ia atrás daquilo até o fim. Isso faz diferença em um bom jornalista, e não se fazem mais jornalistas como ele. De tão criativo e inovador que era, chegou a acompanhar um tomate, desde o pé até ao mercado, para falar sobre como se formava a inflação (A inflação começa aqui, publicada em 27 de outubro de 1991). Às vezes ele colaborava com a Domingo, fazendo as Listas, muito antes de listas fazerem sucesso na internet. Ele já demonstrava paixão pelo carnaval e pelo Rio, e fazia enumerações do tipo “10 coisas tipicamente cariocas”.

Em 2006, Lula voltou à PUC, como professor, trazendo na bagagem a experiência profissional e a abordagem original. Uma das aulas mais emblemáticas era a “Aula das Bolinhas”, atividade conjunta das turmas de Comunicação Impressa. Os professores liam notícias, e os alunos tinham que indicar se eram mais adequadas para rádio, impresso ou televisão, arremessando bolas numa cesta. A concepção cenográfica era de Lula, que trazia uma pilha de jornais, um aparelho de rádio, uma TV antiga e uma rede, para contextualizar a cena. A aula das bolinhas teve edições especiais, como na recepção a alunos no PUC Por Um Dia em 2010, lembra a professora Adriana Braga:

– Lula, que dividia comigo pela primeira vez a recepção aos estudantes naquele ano, chegou trazendo uma enorme sacola. E, como um mágico que saca o coelho da cartola, tirou dali objetos simples, mas que na dinâmica proposta por ele ganharam sentido, fazendo daquele encontro uma grande brincadeira. Os estudantes se divertiram muito e aprenderam brincando princípios importantes acerca das práticas jornalísticas. Foi um dia inesquecível.

Na vida privada, o dia inesquecível era o Dia Beatle, evento anual que reunia um grupo seleto de beatlemaníacos, amigos e agregados. Foram 18 edições. Lula cuidava de cada detalhe da programação para criar a atmosfera Beatles, desde o café da manhã – com morangos, maçãs, e floco de milho, referências a músicas da banda – até o fim do dia, com um quiz. Numa edição, surpreendeu os amigos levando a Pepperband para tocar na sala. Elaborava perguntas sobre a história da banda, e até questões sobre si próprio: “O que eu disse quando ouvi tal música?”. Como prêmio, distribuía brindes que havia ganhado durante o ano – o amigo Ulisses Mattos já saiu carregando um pote enorme de Whey Protein.

– O convencional não convinha muito bem a ele. Não levava a vida de maneira cartesiana. Vivemos um período em que tudo precisa estar formatado, dentro da regra, com arestas presentes e caminhos claros. O Lula pervertia o controle e a lógica normativa, buscava o lado criativo e intuitivo – descreve o professor Rafael Russak, um dos frequentadores do encontro. Os dois se aproximaram em 2007, no Portal PUC-Rio Digital – Lula foi um dos primeiros editores do projeto do Departamento, coordenando estagiários, como fez por muitos anos no Jornal do Brasil.

Lula Branco Martins na redação do Jornal do Brasil, em 2001

Além dos Beatles, Lula tinha no carnaval uma grande paixão. Além de escrever grandes matérias sobre os desfiles e coordenar os cadernos especiais de carnaval do JB, editou por anos a revista Rio, Samba & Carnaval, iniciou um curso de carnavalesco, e aprendeu a tocar surdo. Também escreveu sambas-enredo, chegando a participar de disputas pela Unidos da Tijuca e Império da Tijuca. “Ele nem queria a vitória. Só queria conhecer o ambiente e a sensação, para poder escrever sobre. Essa é uma pessoa dedicada a fazer e viver daquilo que gosta”, conta PC.

Foi para fazer projetos especiais de samba e carnaval que o jornalista Maurício Lima, então diretor da Veja Rio, o levou para a revista, em 2010. Para Maurício, Lula era um dos poucos jornalistas com espírito inventivo. E lamenta que esse tipo de jornalismo seja raro atualmente.

– O que me impressionava no Lula era a sua criatividade. Sabe aquele estereótipo do cara genial e maluco ao mesmo tempo? Era ele. Sempre tinha soluções criativas, assuntos diferentes, sugestões fora da caixa.

Mencionou também excentricidades do colega no cotidiano da redação:

– Ele era uma figura absolutamente fantástica de se conviver. Às vezes, antes da reunião de pauta, ele perguntava se podia tocar violão para se expressar melhor. Fazia uma apresentação, e era sempre brilhante. Também não era raro ele aparecer na redação de madrugada, meio de pijama, falando que tinha surgido uma ideia e que precisava desenvolvê-la na hora. Ele era capaz de se dedicar a um projeto com esse tipo de entrega, tanto no plano pessoal quanto no profissional. Morreu o último jornalista romântico.

Autenticidade e paixão estiveram presentes em todas as esferas da vida. Nos anos 1990, armou um encontro casual com os pais numa praça – em Madri, Espanha, onde estavam em viagem. Chegou com a camisa do América. A mãe, dona Neyse Branco Martins, apontou: “Olha lá, Wilson, aqui também tem torcedor do América”. Nem lhe passou pela cabeça que pudesse ser o próprio. Quando PC foi convidado para o Roda-Viva, simulou uma mesa-redonda nos moldes do programa de TV na sala de casa, para que amigos sabatinassem previamente o historiador e jornalista. Após o atentado de 11 de Setembro, chamou os amigos para um debate sobre o Oriente Médio. Quando Amanda Barros, sua ex-mulher, foi fazer intercâmbio em Londres, Lula lhe deu um calendário gigante, com mensagens de amor escondidas atrás de 100 dias, para que ela fosse destacando as folhinhas quando acordasse. No centésimo estava escrito “Desce as escadas e vem ver quem está aqui”. Amanda não sabia que ele tinha planejado a viagem e se surpreendeu ao vê-lo no andar de baixo da casa, tocando The long and winding road, de Paul McCartney, ao piano.

Amanda e Lula se conheceram em 2008, e ficaram nove anos juntos. Ambos tinham a cultura como interesse comum. Amanda viu de perto a intensidade com que ele se dedicava ao trabalho, fosse preparando as aulas até de madrugada ou escrevendo músicas, matérias e poesias a qualquer momento, desde a coletânea O golpe da maior idade, que lançou com amigos aos 20 anos, até as 10 canções que compôs para ela enquanto estava em Londres.

– Eu era muito nova, tinha 20 anos quando o conheci, então ele fez com que eu amadurecesse e mudou minha maneira de enxergar o mundo. Éramos grudados e conversávamos durante a madrugada inteira sobre as diferenças da nossa geração. Ele era de um tempo em que as pessoas conversavam sobre poesia, ouviam música juntos e frequentavam bibliotecas. Às vezes, eu queria tirar foto de alguma coisa, e ele falava para eu deixar o registro de lado e aproveitar o momento.

Fã do grupo Roupa Nova, Amanda conta que, no início do namoro, Lula sempre a entregava presentes aleatórios, como um herói, um sol e uma estrela. Ela só foi perceber, um tempo depois, que ele estava formando a canção Sapato velho, hit da banda. Quando completaram dois meses de namoro, ele confeccionou um jogo de tabuleiro, com dados e cartinhas que traziam perguntas sobre a história dos dois. Jamais presenteava alguém com presentes comuns. Ele gostava mesmo é de produzir presentes que carregassem histórias. Era assim a cada Natal na casa dos pais: "Ele juntava brindes que ganhara ao longo do ano, disfarçava com embrulhos extravagantes e pedia para escolhermos um número. Nossa família já ganhou com isso desde presentes muito bons, como um kit de vinho, até um livro enorme e pesado sobre a história do Bob's", conta a sobrinha, Luíza Almeida, de 23 anos. Luciana Brafman também se lembra de um presente que ganhou quando estava grávida da primeira filha: um show de mágica, arte em que Lula se aprimorou por causa de uma reportagem que escreveu. “Ele fez até um curso para aprender truques, e comprou vários apetrechos”. Mauro completa:

– Nada nele era lugar-comum. A aula, a reportagem, as festas, as declarações de amor. Tudo era fora do óbvio e tinha que surpreender. Assim também lidava com o Rio de Janeiro, uma de suas paixões. Todas as suas abordagens eram além do esperado, sempre tinha um olhar diferenciado e crítico.

Projetos

Além de cativar as pessoas para seus projetos, Cássia registra que Lula sempre mergulhava com os amigos em suas próprias empreitadas: “Recentemente o procurei porque queria ajuda para organizar um sarau de música brega, e ele aceitou”.

PC conta que o amigo foi fundamental no lançamento de seu primeiro livro, Eu não sou cachorro, não, sobre a música popular cafona produzida no país em tempos de ditadura. Lula acompanhou o projeto desde o início, sempre animado e confiante no trabalho. Foi Lula quem arranjou o contato com o Grupo Editorial Record, que lançou o livro em 2010. Da mesma forma, assistiu a praticamente todas as sessões do musical The book of mórmon, que o diretor teatral Rubens Lima Jr. produziu na Uni-Rio, levando para a fila de três horas amigos e convidados como Zuenir Ventura.

Com Alexandre Carauta, antigo colega de JB, formou uma inseparável dupla na PUC. Além da disciplina Comunicação Impressa, compartilharam projetos como a biografia-surpresa de Dona Lúcia Carauta, que Lula escreveu com o rigor de apuração e a narrativa fluida de todos os seus textos. Cássia lembra que, desde a juventude, ele já demonstrava a habilidade de concretizar projetos:

– Ele era uma pessoa que inventava fantasias e trabalhava para realizá-las. Era assim em sua vida pessoal e nas aulas, onde ele também fazia de tudo para estimular os alunos. Estava sempre tentando construir uma maneira criativa de transmitir a disciplina que dava. De vez em quando eu ia à sala dele e via o que estava aprontando, e ele sempre inventando alguma atividade pouco usual.

No lançamento do último livro do amigo Paulo Cesar de Araújo (Foto: Ligia Lopes/2014) e na Aula das Bolinhas (Foto: Camila Grinsztejn/2010)

Ulisses reitera: “Ele sempre foi criativo, mas muitas pessoas são. O que nos surpreendia não eram as ideias malucas, e sim as concretizações”.

Licenciado, Lula esteve na PUC na sexta-feira, 24. Veio matar a saudade. Almoçou no campus com amigos e assistiu à palestra da disciplina Comunicação Impressa na sala K102. Estava animado com mais uma ideia, o site Mil Personalidades do Rio. Da PUC, foi para a Cinelândia, onde iria começar a tirar o projeto do papel. A caminho do Sebrae, Lula teve um AVC hemorrágico, que o levou ao Hospital Souza Aguiar. Morreu às 18h53 de domingo, 26 de março, no São Lucas, duas semanas depois de completar 53 anos, dia 12.

O velório, dia 28, no Memorial do Carmo, e a missa de Sétimo Dia, celebrada nesta segunda-feira, 3, na Igreja Sagrado Coração de Jesus da PUC-Rio pelo padre Luís, reuniram dezenas de amigos de todas as épocas – da PUC, do Colégio Militar, do Jornal do Brasil, da Abril. O carinho emocionou a mãe, a professora aposentada Neyse Branco Martins; o pai, o coronel reformado Wilson Branco Martins, e a irmã, a médica Regina Lúcia Branco Martins de Almeida, a Maninha.

PC de Araújo comenta:

– Uma coisa é certa: ele viveu fazendo sempre o que gostava. Vivia pelo prazer. E ele era radical, e isso, de certa forma, custou parte da vida dele. Com o problema de saúde que tinha [diabetes], precisava de disciplina, mas não abriu mão do prazer. Era como se preferisse viver menos, mas fazendo tudo como queria. Foi o nosso Tim Maia: comiam e bebiam como queriam, e morreram quase com a mesma idade, ambos em meio a projetos.

O professor Miguel Pereira completa:

– Nas últimas semanas, quando o encontrava no Departamento, lhe dizia que precisávamos dele e, portanto, ele tinha obrigação moral de se cuidar. Infelizmente, ele sempre deu mais atenção às ideias que ao corpo. Só que, sem essa matéria, elas não existem. Somos criaturas feitas à imagem e semelhança do nosso Criador, que também se fez carne, para nos iluminar o caminho. A passagem de Lula foi luminosa. Ficamos com saudades.

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