“Saneamento retrata nosso atraso”, diz diretora de Infraestrutura do BNDES
25/04/2017 17:19
Gustavo Côrtes

Em palestra no auditório do RDC, na PUC-Rio, Marilene Ramos propôs substituição de obras públicas por expansão de concessões e Parcerias Público-Privadas (PPPs), para assegurar investimentos em meio à crise

De todas as áreas da infraestrutura brasileira, o saneamento é a que mais carece de investimentos, alertou a diretora de Infraestrutura e Meio Ambiente do BNDES, Marilene Ramos. Em palestra no Auditório do RDC, na PUC-Rio, em 28 de março, a ex-secretária de Ambiente do Estado do Rio expôs a situação precária na qual vive boa parte dos brasileiros: apenas 40% da população tem acesso ao sistema de esgoto e só 59% tem água tratada, “uma das necessidades mais essenciais à vida”. A insalubridade da água causa doenças que atingem principalmente crianças de 0 a 5 anos, lembra a engenheira, que presidiu o Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro (Inea) de 2010 a 2011 e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de 2011 a 2014:

– Para constatar o saneamento precário, basta ir a Duque de Caxias, na Região Metropolitana do Rio, onde as escolas são abastecidas por caminhões-pipa. O mesmo ocorre em Itaboraí, onde o abastecimento de água é restrito a 40% da população. Os outros 60% têm poços, que geralmente ficam ao lado de uma fossa, onde se armazenam dejetos humanos. Quando se extrai a água do poço, muitas vezes a fossa vai junto e polui a água, causando doenças que impactam principalmente as crianças em formação, prejudicando seu desenvolvimento. Quando se fala de coleta e tratamento de esgoto, o drama brasileiro é ainda mais grave. Só 40% da população tem tratamento de esgoto. Muitas casas despejam o esgoto diretamente nos rios e no mar, o que explica a poluição de corpos fluviais estratégicos.

Apesar das políticas de austeridade e controle de despesas imposto pelo chamado Teto dos Gastos, Marilene assegurou que o presidente Michel Temer e a presidente do BNDES indicada por ele, Maria Silvia Bastos Marques, se comprometeram com investimentos em saneamento por meio do Programa de Parcerias para Investimentos (PPI), que firmará acordos com operadores privados:

– Maria Silvia afirmou, no dia da posse (em 1º de junho de 2016), que saneamento era a prioridade e que pretendia estruturar um programa para isso. Na primeira reunião do PPI, com o presidente Michel Temer, o ministro Henrique Meirelles e outros membros do alto escalão, ela colocou o assunto na mesa e todos falaram sobre o tema, inclusive o presidente, que também o colocou entre as prioridades do governo.

A infraestrutura tem efeitos transversais na economia, porque beneficia todos os setores da indústria, melhora a qualidade de vida, proporciona melhorias ambientais e gera riqueza”

Marilene alertou que a relação entre investimento em infraestrutura e Produto Interno Bruto (PIB) vem reduzindo no país: hoje se gasta 2,28% do PIB no setor, enquanto países como China e Tailândia chegam a investir entre 10% e 15%. Para a engenheira, o investimento deveria estar em torno de 4% a 6% do PIB, para o país sair do “atraso”:

– O investimento do Brasil em infraestrutura não consegue decolar. Nas décadas de 1970 e 80, o país chegava a direcionar mais de 5% do PIB à infraestrutura, mas, gradativamente, esse número diminuiu até chegar aos atuais 2,28%. Isso é um retrato do nosso atraso e a indicação do esforço fiscal que o Brasil precisa fazer para mudar esse quadro e reduzir esse déficit. A infraestrutura tem efeitos transversais na economia, porque beneficia todos os setores da indústria, melhora a qualidade de vida, proporciona melhorias ambientais e gera riqueza. 

Marilene usou a BR-163 para ilustrar a defasagem da infraestrutura brasileira. A rodovia, que liga Cuiabá, capital do Mato Grosso, a Santarém, no Pará, e é a principal via de escoamento da produção da soja, principal produto de exportação brasileiro. Com o atraso na duplicação da pista, paralisações têm sido frequentes.

– Em fevereiro, havia cerca de 5 mil caminhoneiros parados, o que gerou um prejuízo de cerca de R$ 50 milhões ao país. Essa estrada já deveria estar asfaltada. Mais do que isso: deveria haver, ao longo dela, uma ferrovia, porque a construção da estrada provocará avanço de ocupações sobre a floresta amazônica e, consequentemente, aumento do desmatamento. Há um projeto ferroviário chamado Ferrogrão previsto para esta região.

Marilene criticou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), idealizado pela ex-presidente Dilma Rousseff, em 2007, quando ocupava o cargo de ministra chefe da Casa Civil. O programa pretendia impulsionar a infraestrutura do Brasil através de obras públicas. Segundo a diretora de Infraestrutura e Meio Ambiente do BNDES, a disputa entre empresas, a vigilância dos órgãos de controle e a falta de celeridade da Justiça para solucionar entraves legais referentes às obras fazem com que o modelo não prospere.

– De 2007 para cá, tentou-se investir em infraestrutura, através do PAC. O governo contratava a execução da obra por intermédio de órgãos estaduais, federais e municipais. Eu as fiz quando estava no governo do Estado do Rio, e posso dizer que esse modelo é feito para dar errado. Eu sei o que é fazer a licitação, aprovar o edital no Tribunal de Contas e encarar os questionamentos e as brigas das empresas concorrentes, que entram na Justiça quando não se contentam com o resultado. Então, a Justiça manda parar tudo por um ano. No dia da liberação da contratação, os preços estão desatualizados, mas a Caixa, que é a financiadora, proíbe a alteração. Ou seja, não tem a menor chance de dar certo.

Marilene trabalhou com licitações de obras de transposição do Rio São Francisco, como presidente do Ibama, em 2011. O projeto foi viabilizado pelo governo federal por meio de obras públicas, o que segundo a ela, é a razão do insucesso da iniciativa, “prometida desde os tempos de Dom Pedro II”. A engenheira ressalta as constantes alterações no custo das obras e a morosidade com que o processo licitatório se desenvolve.

– Também há planos de parceria público-privada para a transposição do Rio São Francisco. O Nordeste passa hoje pela pior seca em 50 anos e, em algumas regiões, em 100 anos. A situação é crítica. A previsão é que a partir de julho ou agosto já não haja mais água em Fortaleza. O reservatório de Castanhão, no Ceará, está com cerca de 12% do nível total de armazenamento. Quando eu comecei a trabalhar com a obra de transposição do São Francisco, o custo da implementação parcial seria de R$ 4 bilhões. Depois, passou para R$ 9 bilhões, porque a obra não anda e os valores ficam desatualizados, o que demanda novas rodadas de licitações. O último trecho do eixo norte, que levaria água ao Ceará e ao Rio Grande do Norte, foi abandonado pela construtora Mendes Júnior, que tem problemas na Justiça. Abriu-se um novo processo licitatório pelo qual as empresas concorrentes brigam e impedem o prosseguimento das obras.

Como alternativa às obras públicas, Marilene propõe novas Parcerias Público-Privadas (PPPs). Segundo ela, o maior dinamismo desse modelo, no qual o BNDES financia obras do setor privado em vez de o governo contratá-las diretamente, potencializa o investimento do Brasil em áreas estratégicas durante a crise. Contratos já estabelecidos seriam alterados, e os futuros seriam feitos conforme regras do PPIs:

– A crise fiscal reduziu muito o número de obras públicas. O Ministério das Cidades libera recursos apenas para finalizar as já iniciadas, o que é bom, porque mostra que eles estão tendo juízo. A solução é a ampliação de PPPs e concessões. Para isso, criou-se o PPI junto à Presidência da República. O programa tem duas missões. A primeira é resolver as últimas rodadas de concessões passadas, das quais muitas geraram enormes problemas, porque foram feitas com base em previsões de crescimento que não se concretizaram. Nós temos aeroportos e rodovias que perderam substancialmente sua lucratividade, por isso é preciso readequação para recuperação do equilíbrio econômico desses investimentos. A segunda é aperfeiçoar as novas concessões que estão por vir, para atrair principalmente investimento estrangeiro.

Marilene aponta as condições de financiamento que o BNDES oferece como vantagem do banco em relação à concorrência do mercado de crédito convencional. O PPI financia até 80% do custo de obras de infraestrutura e cobra uma taxa de juros de 7%, enquanto a taxa Selic, na qual se baseiam os juros dos bancos privados, está em 12,15%.

– O mundo inteiro tem um enorme volume de capitais que não estão sendo remunerados, em razão de taxas de juros muito baixas – às vezes até negativas. Esses capitais têm disponibilidade para investir no Brasil, desde que nós mostremos a eles que aqui existe segurança econômica e que esses investimentos serão compensados. A experiência recente não é boa, pois muitos projetos anteriores fracassaram e, assim, afugentaram o investimento. Mas hoje há uma série de projetos sendo estudados. Só em ferrovias, temos a Norte-Sul, a Ferrogrão e a Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL). Essa é a aposta: saem obras públicas, entram PPPs e concessões.  

Além de vias que ligam regiões do país, o aprimoramento do transporte dentro das cidades também está na pauta do BNDES, revela Marilene. Segundo estudo do banco, seriam necessários R$234 bilhões em investimentos na mobilidade urbana do Brasil para suprir as deficiências do setor. Ela ainda ressalta os prejuízos ambientais, econômicos e de qualidade de vida causados pelo não planejamento do transporte das cidades.

– O Brasil atingiu a marca de 50 milhões de automóveis, quase um para cada quatro habitantes, porque não há alternativas de transporte. O resultado é poluição, caos no trânsito das cidades e perda de tempo e de qualidade de vida. O Rio de Janeiro e a Região Metropolitana, como estão próximos ao mar, deveriam ter um ar muito menos poluído que o de São Paulo, mas se observarmos os indicadores do entorno da Rodovia Washington Luiz, encontraremos um ar tão deteriorado quanto o de São Paulo, por causa do volume de carros e dos engarrafamentos.

“A Lava-Jato e a crise econômica forçaram o BNDES a reduzir os investimentos”

Embora mantenha o posto de maior investidor em infraestrutura do país, o BNDES vem reduzindo a capacidade de investimento. No ano passado o montante desembolsado pelo banco foi de R$ 90 bilhões, metade do volume de capital disponibilizado em 2014. Segundo Marilene, além da crise econômica, a Lava-Jato foi determinante para essa queda, já que muitas empresas se tornaram incapazes de honrar os compromissos e as regras do fundo proíbem que instituições condenadas em processos criminais recebam financiamento.

– O BNDES é o maior financiador de infraestrutura do país. Um dos diferenciais do banco é o prazo. Financiamentos de estradas, por exemplo, são amortizados em 20 anos. Os bancos convencionais não oferecem condições assim. Além disso, temos uma taxa de juros de longo prazo bastante atrativa, o que também nos diferencia do restante do mercado. Em 2015, o desembolso do banco caiu para R$ 130 bilhões, cerca de R$ 50 bilhões a menos que o ano interior. No ano passado, houve redução para R$ 90 bilhões. Isso tudo em função da crise. Muitos projetos que já estavam previstos na carteira do banco foram deixados de lado. A Lava-Jato também fez com que financiamentos fossem cancelados, porque muitas empresas que estavam à frente dos projetos perderam o cadastro, conforme prevê a norma do banco em casos de ilicitudes. Do total de recursos fornecidos pelo BNDES, geralmente cerca de 40% são destinados à infraestrutura, mas a partir do ano passado esse percentual sofreu queda, pois as empresas mais envolvidas em obras de infraestrutura foram atingidas pela Lava-Jato.

Caso Samarco

Ao final da palestra, quando o microfone foi cedido aos espectadores, Marilene foi perguntada sobre dificuldades de enfrentar crises como a provocada pelo rompimento da barragem de Fundão, que soterrou a cidade de Mariana. Na época, Marilene era presidente do Ibama. Segundo ela, como a responsável pelo desastre era uma empresa privada, a pressão sobre órgãos públicos foi menor. A engenheira mencionou o deslizamento de terra em Angra dos Reis, no litoral fluminense, em 2010, como um caso em que o poder público “teve mais trabalho”:

– O mais difícil é gerenciar quando o evento é público. Quando é privado, por mais que as dimensões do desastre de Mariana sejam gigantescas, o setor privado tem condições de rapidamente aportar recursos e mobilizar atendimento. No caso do deslizamento de Angra dos Reis, por exemplo, foi difícil, porque cabia ao governo tomar alguma medida. O problema é que faltam recursos para fazê-las. A Samarco conseguiu colocar um batalhão para atender a população.

O professor do Departamento de Engenharia Civil da PUC-Rio e funcionário da Samarco Sandro Sandroni defendeu a mineradora. Segundo ele, os engenheiros responsáveis por prevenir acidentes não sabiam do risco de rompimento da barragem de Fundão e evitaram que mais vazamentos de lama atingissem a área afetada pelo desastre:

– Eu comecei a trabalhar na empresa em agosto e me preocupava com a culpabilidade no caso. Afinal, ninguém quer trabalhar para bandido. Posso afirmar, sem a menor dúvida, que a Samarco não sabia de nada. Após a ruptura, a companhia contratou uma consultoria composta pelos maiores engenheiros de resíduos do mundo. Depois de oito meses de estudos, a conclusão é que o risco de rompimento não era uma obviedade. Das 19 mil pessoas mortas pela lama, 14 mil trabalhavam na Samarco. Se a empresa sabia, esses 14 mil mortos são suicidas. Os diretores, os engenheiros e os técnicos da companhia almoçavam quase todos os dias em um restaurante atingido pela lama. Se eles soubessem do risco de rompimento, evidentemente não fariam isso.

Embora acredite que a mineradora desconhecia a possibilidade de rompimento da barragem, Sandroni ressaltou: “Isso não retira a responsabilidade da Samarco sobre tudo o que aconteceu”.

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