ao Mar Vermelho e uma mesquita
Já era noite quando aterrissei em Jeddah. Para substituir a abaya, vestimenta preta obrigatória que cobre as mulheres sauditas do pescoço aos pés, fui obrigada a vestir, em um calor de mais de 30º, o sobretudo que usara dias antes em Paris, num inverno rigoroso. Vi olhares curiosos, porém distantes, de homens que provavelmente se perguntavam o que três mulheres – eu, minha mãe e minha irmã – sozinhas e ocidentais, fazíamos naquele velho aeroporto. Senti, como um estalo de dedos, o choque cultural. Só pudemos sair da área de imigração com a presença de meu pai, que foi chamado no desembarque. Assim que saí, me dei conta de que tinha chegado na época do ano mais tumultuada da Arábia Saudita: o Haj, peregrinação anual a
cidade da Arábia Saudita
A primeira semana foi, sem dúvida, a mais difícil. Ainda não me acostumara com o fato de ser obrigada a usar a abaya. Por outro lado, por não ser muçulmana, não precisaria cobrir o rosto. Lembro-me de quando fui comprar a abaya, e os vendedores, todos homens, se sentiam constrangidos quando escolhia uma e pedia para prová-la. De repente um deles me olhou ferozmente e ordenou que eu cobrisse meus braços expostos com a vestimenta. Parei. Olhei ao redor, assustada, e me vi sozinha, oprimida. Senti-me impotente; sem qualquer direito de argumentar, pela primeira vez na vida. Mais tarde, entendi que era por respeito às tradições locais. Inconformei-me com o fato de as mulheres não fazerem uma revolução para mudar esses costumes, mas percebi que elas podem pensar o mesmo das ocidentais.
340 shoppings de Jeddah
Todos os dias, quase às 6h, um chamado me despertava. Auto-falantes espalhados por toda a cidade recitavam trechos do Alcorão e convocavam a população para a primeira reza do dia. Rezas essas que param tudo, seis vezes ao dia. Enquanto lojas e restaurantes fecham as portas, pessoas se encaminham à mesquita mais próxima. Sapatos de fora, homens de um lado, mulheres do outro. Ninguém contraria a regra, pois os mutawwa (a polícia religiosa) fiscalizam os passos de cada cidadão. Certa vez, estava em um shopping e
Vermelho: uma a cada esquina
Em menos de dois meses também tive propostas que, futuramente, só poderiam render em casamento. Cenas raras de vendedores que nunca tinha visto na vida pedindo meu número de telefone, carros conversíveis parando para puxar conversa e tentar marcar um encontro, com o consentimento dos pais, se tornaram comuns.
Como brasileira, me senti bem-vinda inúmeras vezes. Como estrangeira, jamais. Ao descobrirem minha origem, um assunto lhes vinha de imediato: a Seleção Brasileira. Por isso, muitos eram simpáticos e várias vezes ganhei produtos de vendedores, que ficavam maravilhados de conhecer alguém do Brasil. Quando pisei em terras sauditas, não pensei que fosse me deparar com suntuosos palácios de ouro, construções moderníssimas, lojas européias, Ferraris a cada esquina e grandes símbolos da globalização como o McDonald’s. Por mais que sintam uma certa aversão aos hábitos americanizados, os sauditas respiram a cultura ocidental. Ao mesmo tempo, o governo, regido pelo Islã, tenta se isolar do mundo, proibindo todos os habitantes de praticar qualquer outra religião.
margens do Mar Vermelho
Algumas mulheres protestavam por seus direitos, mas suas reivindicações eram muito pouco diante do silêncio da imensa maioria feminina. Jornais locais publicavam relatos de várias mulheres que pediam o direito de dirigir, de escolher o próprio marido, de poder sair do país sem autorização de um homem.
Quando voltei ao Brasil, em fevereiro, notei o quanto esta experiência foi única. A idéia errada, de deserto e camelos, se desfez diante de um país de contrastes – moderno, mas extremamente conservador. Vivi a breve realidade de uma mulher estrangeira em um país extremista. Nunca saberei ao certo o que pensam as muçulmanas. A verdade é que, por mais que saibamos que a realidade lá é outra, tudo é muito maior quando se vive nela. Como brasileira, veio-me a certeza de que só dei valor à minha liberdade quando a perdi.
Edição 187