Arábia Saudita sem véu
11/06/2007 17:00
Ludmila Lima / Fotos: Arquivo pessoal

Em um país onde a globalização luta com os conceitos islâmicos, a repórter Ludmila Lima viveu os conflitos de uma sociedade extremamente conservadora. A reportagem dá detalhes da vida de uma estrangeira na terra do profeta Maomé.

A repórter com abaya, em frente
ao Mar Vermelho e uma mesquita
Durante dois meses, vivi na cultura saudita. Já tinha morado em lugares como os Estados Unidos, país que se proclama como o da liberdade, durante quatro anos, e na Guatemala, e confesso que não foi fácil. Em Jeddah, segunda maior cidade da Arábia Saudita, vi o contraste da modernização e da tentativa de manter o país, berço do Islã, isolado do resto do mundo.

Já era noite quando aterrissei em Jeddah. Para substituir a abaya, vestimenta preta obrigatória que cobre as mulheres sauditas do pescoço aos pés, fui obrigada a vestir, em um calor de mais de 30º, o sobretudo que usara dias antes em Paris, num inverno rigoroso. Vi olhares curiosos, porém distantes, de homens que provavelmente se perguntavam o que três mulheres – eu, minha mãe e minha irmã – sozinhas e ocidentais, fazíamos naquele velho aeroporto. Senti, como um estalo de dedos, o choque cultural. Só pudemos sair da área de imigração com a presença de meu pai, que foi chamado no desembarque. Assim que saí, me dei conta de que tinha chegado na época do ano mais tumultuada da Arábia Saudita: o Haj, peregrinação anual a

Vista aérea da segunda maior
cidade da Arábia Saudita
Meca. Jeddah é o principal porto de entrada para muçulmanos de todo o mundo. No aeroporto grupos imensos disputavam um lugar no chão, em busca do último sono antes da partida para Meca. Em dezembro de 2006, o número de fiéis chegou ao recorde absoluto de 1,7 milhão.

A primeira semana foi, sem dúvida, a mais difícil. Ainda não me acostumara com o fato de ser obrigada a usar a abaya. Por outro lado, por não ser muçulmana, não precisaria cobrir o rosto. Lembro-me de quando fui comprar a abaya, e os vendedores, todos homens, se sentiam constrangidos quando escolhia uma e pedia para prová-la. De repente um deles me olhou ferozmente e ordenou que eu cobrisse meus braços expostos com a vestimenta. Parei. Olhei ao redor, assustada, e me vi sozinha, oprimida. Senti-me impotente; sem qualquer direito de argumentar, pela primeira vez na vida. Mais tarde, entendi que era por respeito às tradições locais. Inconformei-me com o fato de as mulheres não fazerem uma revolução para mudar esses costumes, mas percebi que elas podem pensar o mesmo das ocidentais.

Ludmila em um dos
340 shoppings de Jeddah
No condomínio onde vivem todos os não-muçulmanos, me sentia livre e, ao mesmo tempo, confinada. O pequeno condomínio era cercado por muros de concreto, tanques de guerra e soldados com metralhadoras e cercas elétricas, tudo para garantir a paz aos moradores estrangeiros. Todos os costumes ocidentais eram permitidos. Podia ir à piscina ou ir até o pequeno mercado usando um vestido comum. Sauditas são proibidos de entrar nesse território. Um passo para fora e lá estava eu, com a abaya do pescoço aos pés. Que saudades eu tinha de andar tranqüilamente pelas ruas, sem atrair olhares críticos.

Todos os dias, quase às 6h, um chamado me despertava. Auto-falantes espalhados por toda a cidade recitavam trechos do Alcorão e convocavam a população para a primeira reza do dia. Rezas essas que param tudo, seis vezes ao dia. Enquanto lojas e restaurantes fecham as portas, pessoas se encaminham à mesquita mais próxima. Sapatos de fora, homens de um lado, mulheres do outro. Ninguém contraria a regra, pois os mutawwa (a polícia religiosa) fiscalizam os passos de cada cidadão. Certa vez, estava em um shopping e

Mesquita de frente para o Mar
Vermelho: uma a cada esquina
percebi que um mutawwa me analisava. Discretamente, ele se aproximou para ordenar que eu pusesse o véu. Apertei o passo, e fui em direção ao meu pai. O mutawwa desistiu.

Em menos de dois meses também tive propostas que, futuramente, só poderiam render em casamento. Cenas raras de vendedores que nunca tinha visto na vida pedindo meu número de telefone, carros conversíveis parando para puxar conversa e tentar marcar um encontro, com o consentimento dos pais, se tornaram comuns.

Como brasileira, me senti bem-vinda inúmeras vezes. Como estrangeira, jamais. Ao descobrirem minha origem, um assunto lhes vinha de imediato: a Seleção Brasileira. Por isso, muitos eram simpáticos e várias vezes ganhei produtos de vendedores, que ficavam maravilhados de conhecer alguém do Brasil. Quando pisei em terras sauditas, não pensei que fosse me deparar com suntuosos palácios de ouro, construções moderníssimas, lojas européias, Ferraris a cada esquina e grandes símbolos da globalização como o McDonald’s. Por mais que sintam uma certa aversão aos hábitos americanizados, os sauditas respiram a cultura ocidental. Ao mesmo tempo, o governo, regido pelo Islã, tenta se isolar do mundo, proibindo todos os habitantes de praticar qualquer outra religião.

Passeio de camelo às
margens do Mar Vermelho
O que mais me incomodava de fato era o fanatismo religioso. Em nenhum outro lugar do mundo, eu tinha sido proibida de usar um simples colar com uma cruz.

Algumas mulheres protestavam por seus direitos, mas suas reivindicações eram muito pouco diante do silêncio da imensa maioria feminina. Jornais locais publicavam relatos de várias mulheres que pediam o direito de dirigir, de escolher o próprio marido, de poder sair do país sem autorização de um homem.

Quando voltei ao Brasil, em fevereiro, notei o quanto esta experiência foi única. A idéia errada, de deserto e camelos, se desfez diante de um país de contrastes – moderno, mas extremamente conservador. Vivi a breve realidade de uma mulher estrangeira em um país extremista. Nunca saberei ao certo o que pensam as muçulmanas. A verdade é que, por mais que saibamos que a realidade lá é outra, tudo é muito maior quando se vive nela. Como brasileira, veio-me a certeza de que só dei valor à minha liberdade quando a perdi.

 

 Edição 187