Rituais da competição
29/11/2016 15:28
Gabriela de Vicq

Os antropólogos Roberto DaMatta e Rosana da Câmara Teixeira participaram da mesa “Rituais, competição e conflito”, organizada pelo Departamento de Ciências Sociais. Expuseram suas teses sobre o caráter competitivo e ritualístico do esporte e sobre torcidas organizadas cariocas, respectivamente.

O interesse do antropólogo Roberto DaMatta por futebol começou na infância, quando costumava jogar e assistir. O amor pela bola o aproximava do pai soturno, sócio do Flamengo de Futebol e Regatas. Rosana da Câmara Teixeira, por sua vez, estuda as torcidas jovens cariocas desde 1995, motivada por uma briga de torcidas que terminou em morte. Os dois antropólogos foram escalados para expor seus pensamentos e estudos sobre futebol na mesa “Rituais, competição e conflito”, organizada pelo Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, no dia 17 de novembro.

­– A criança, mais do que em relação à religião, precisa se definir quanto ao time de futebol. É a primeira identidade pública que temos que assumir. Um homem pode até mudar de gênero, mas não de time ­– brincou DaMatta, citando Nelson Rodrigues.

Roberto DaMatta. Foto de Gabriela de Vicq

 

DaMatta vê o esporte como um sistema cultural. As regras de uma modalidade marcam a passagem do egocentrismo para uma noção social. A dimensão básica do jogo é a competição que, segundo o antropólogo, é reprimida no Brasil. Essa rivalidade entre times foi comparada a dois exércitos que usam uma só bala – a bola. Há uma cosmologia esportiva: são delimitadas normas, espaço e tempo especiais.

– O espaço de um jogo é como um templo religioso, um ambiente sagrado, apartado do cotidiano. No esporte há também uma instrumentalização do tempo que, diferente do tempo do dinheiro, é muito mais objetificado. É um tempo relativo, em que centésimos de segundos ou três minutos podem mudar tudo e transformar uma medalha de prata em ouro. Pode ser um tempo de trabalho, para os que jogam, ou um tempo de lazer, para aqueles que torcem.

O estudo de DaMatta pretende analisar a sociedade por meio dos rituais sociais. Foi com essa intenção que ele se debruçou sobre temas que podem não parecer muito acadêmicos: o trânsito, o carnaval, o cafezinho, a comida e a relação entre a casa e a rua foram objetos de pesquisa do cientista social ao longo dos anos, o que resultou em teorias sobre a identidade brasileira.

Professora da Faculdade de Educação da UFF, Rosana lembra que as torcidas jovens surgiram no final dos anos 1960, e mudaram o perfil dos estádios cariocas. O público das arquibancadas passou a incluir, além de amigos e familiares torcedores, grupos organizados. O estádio deixou de ser um espaço só de festa e apoio ao time, aberto para contestações e críticas.

– Muitos veem as torcidas como grupos periféricos e patológicos, que ameaçam o espetáculo do futebol, devendo ser eliminadas. Fui muito influenciada por DaMatta, principalmente pensando o futebol como verdadeira máquina de socializar pessoas. Mas que tipo de socialização é essa? – questionou Rosana.

Rosana da Câmara Teixeira. Foto de Gabriela de Vicq

 

A rivalidade entre as torcidas e o engajamento físico e emocional também são fortes características desse fenômeno, que é marcado pela sensação de pertencimento e emoções contrastantes, ressaltou a antropóloga. Ainda segundo Rosana, disposição para lutar e aceitar entrar em confrontos também parecia ser um pré-requisito para estar no meio dos gritos e bandeiras. Em um grupo consolidado majoritariamente por homens, ela detecta padrões masculinos perceptivelmente arraigados: honra, coragem e virilidade são valores perpetuados nesse meio.

De acordo com Rosana, na década de 1960, os estádios eram diferentes e possibilitavam movimentações espaciais – muito necessárias na dinâmica das torcidas. Em 2000, os megaeventos no Brasil exigiram obras que modificaram a antiga arquitetura das arenas, e as tornaram mais parecidas com as europeias.

– Houve uma diminuição do público máximo, assentos foram instalados, e o ingresso ficou mais caro. Isso tudo contribuiu para a elitização do espaço e dificultou a ação dos grupos torcedores. Com essas mudanças, o público alvo era de espectadores consumidores. Não esperavam mais as torcidas organizadas que, de acordo com essa lógica, não eram bem-vindas por ameaçar o espetáculo.

A antropóloga observou que, com as constantes brigas, os governos apostaram em legislações repressoras, a fim de conter os ânimos nos estádios. Em 2003, foram feitas alterações no estatuto do torcedor com a criação da lei 10.671 que, reformulada, é a atual lei 12.299/10,  e cujo objetivo é conter atitudes violentas nas arquibancadas. Segundo Rosana, era o Grupamento Especial de Policiamento em Estádios (GEPE), uma organização da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que fazia a mediação entre os torcedores e as arenas, e os escoltava para dentro. As torcidas organizadas viraram um caso policial e, com isso, começou um monitoramento que coibia e cerceava ações desses grupos.

Em 2008, as lideranças das torcidas se aliaram e formaram a Federação das Torcidas Organizadas do RJ (FTORJ). A ideia é lutar pelos direitos e buscar soluções junto às autoridades. Para isso, foi necessário dar uma trégua às rivalidades. Para Rosana, a partir dessa ação, o ingresso dos torcedores no espaço público foi mais fluido. Em 2014, formou-se a Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg), em um pacto historicamente inédito: 103 torcidas se uniram para receber o devido reconhecimento e participar das políticas públicas.

- Queriam também pensar em medidas para enfrentar a violência. Eram contra a elitização dos estádios e os assentos marcados em determinadas áreas. Deixaram de ser parte do problema, para fazerem parte da solução – comentou a antropóloga.

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