O número de brasileiros com acesso à internet ultrapassou 100 milhões em 2015, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em novembro. Com o avanço no acesso, cresce também o número de dependentes digitais. Os usuários que conseguem viver suas rotinas de trabalho, estudo, familiar, social e seu lazer off-line, mesmo usando as tecnologias digitais de forma intensa, são diferentes dos compulsivos, que têm necessidade de passar cada vez mais tempo envolvido nas tecnologias. Os casos mais graves são classificados por “demência digital”, objeto de estudo de médicos da Coreia do Sul.
“O risco da denominada demência digital surge quando o internauta se torna compulsivo, não conseguindo o autocontrole sobre o uso”, afirma a psicóloga do Programa Ambulatorial dos Transtornos do Impulso (Poamiti) no Núcleo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (FMUSP), Sylvia van Enck Meira. Para o integrante da Comissão de Administração da Escola Médica da PUC-Rio, o professor Jorge Biolchini, a saída é pela mudança de hábitos por tratamentos utilizados em outros casos de dependência, já que os padrões mental e comportamental são semelhantes:
– Como esses hábitos se adquirem, é possível minimizar ou ficar menos ocupado com isso. No caso de dependência, como há fatores químicos envolvidos, algo mais grave, é preciso apoio social, grupos de apoio, estímulo a pensamentos e atitudes positivas. Precisa-se de uma abordagem mais complexa, senão a pessoa troca uma coisa por outra.
Se para os adultos a recomendação é a mudança de hábitos, no caso de indivíduos jovens o aspecto mais importante é reconhecer os indivíduos que apresentam maior risco para o desenvolvimento do transtorno, segundo o neuropediatra Giuseppe Pastura, da UFRJ, que também incentiva os pais a limitarem o “tempo de tela” na infância:
– Podemos confundir a causa com o efeito da prática patológica de plataformas digitais. Os indivíduos acometidos apresentam baixa autoestima, depressão, tendência suicida, comportamento isolado e timidez patológica. Entretanto, é difícil saber se os conteúdos online causam este comportamento ou se a presença destas características leva o indivíduo a buscar um ambiente virtual que possibilite conexão social e sentimento de competência/autonomia. Obviamente, este comportamento leva a um ciclo vicioso, ou seja, se o indivíduo já apresentava estas características, estas tendem a piorar com o tempo. Da mesma forma, indivíduos procedentes de famílias desestruturadas e com importante conflito parental também têm maior risco. Detectando estes indivíduos e informando os pais a respeito dos comportamentos patológicos, podemos prevenir que o problema, uma vez detectado, se agrave.
Os pacientes afetados costumam mentir para a família ou para o seu terapeuta em relação à quantidade de horas dedicada aos aparelhos digitais. Quando uma pessoa apresenta sintomas do transtorno, é importante verificar quantas horas de fato ela se dedica a esta atividade. A estudante de Relações Internacionais da PUC-Rio Laura Cruz, de 19 anos, admite mentir sobre o tempo gasto na rede, e reconhece ter sua vida acadêmica atrapalhada pelo apego ao celular:
– Minto o tempo todo sobre o tempo gasto. Na época do colégio, minha mãe me mandava estudar, passavam horas, ela voltava e perguntava se eu tinha estudado, eu dizia que sim. Mentira, estava o tempo todo no celular. A mesma cena se repete em relação aos trabalhos que preciso fazer. Meus amigos falam comigo e eu nem comecei. É complicado, eu tento reduzir, mas acho que não deu muito certo. Continuo bem viciada. Em todas as aulas eu estava mexendo e perdia o foco da matéria. Eu comecei a tentar me policiar nessa questão. Já cheguei a pedir a uma amiga que pegasse meu celular e só me devolvesse no final da aula.
O uso excessivo propicia uma série de ameaças à saúde física (transtornos alimentares, distúrbios de sono, comprometimento postural, problemas de audição e visão, lesão por esforço repetitivo), emocionais (fobia social, transtornos de ansiedade, depressão, irritabilidade, perda de sentimentos e perturbação, transtorno obsessivo-compulsivo) e cognitivos (redução da memória, falta de atenção, diminuição de concentração, sonolência, agitação), alertam especialistas.
O casal Josélia da Silva e Gabriel Rüeck se considera “viciado no mundo digital”. Ambos ficam irritados quando a bateria do celular descarrega ou a conexão está lenta.
– Estávamos duas primas e eu, sentadas na cozinha, cada uma no seu “mundo virtual”. Eu estava cozinhando arroz. Ele queimou, e só nós percebemos quando a cozinha já estava cheia de fumaça. Ninguém sentiu nem mesmo o cheiro de queimado – conta Josélia.
O tratamento se baseia nos sintomas apresentados pelo indivíduo afetado. Por exemplo, se ele tiver sintomas de depressão e tendências suicidas, deve receber terapia psicológica voltada para o caso e, muitas vezes, medicação associada. O médico da família deve ser consultado a respeito das diferentes opções de tratamento recomendado para cada caso individualmente, explica Giuseppe.
O usuário dependente da tecnologia pode buscar ajuda profissional, com um médico psiquiatra ou psicólogo. No Instituto de Psiquiatria do HC de São Paulo oferece atendimento psicológico e acompanhamento psiquiátrico semanal, gratuito, para pessoas com idade superior a 18 anos. Há uma pré-triagem, seguida de uma avaliação neuropsicológica e psiquiátrica. Então a pessoa é encaminhada para o atendimento em grupo. A família também participa paralelamente de um grupo de pais e familiares, com a proposta de orientação e compreensão do problema.