em foto feita durante a construção da Auto-Estrada Lagoa Barra. (1981)
Ninguém poderia prever que o Conjunto Habitacional Marquês de São Vicente estivesse fadado a perder seu nome, antes mesmo do batismo, para a silhueta sinuosa do desenho do arquiteto Reidy, e que esse "Minhocão", condenado desde a pia a viver nos subterrâneos da cidade, pudesse ser arrancado da terra e levantado do chão.
De fato, a história do lugar é a de sua levitação. Ela começou quando o interventor federal
Henrique Dodsworth deu início a um plano de remoção de favelas do centro do Rio de Janeiro em 1942. Os cinco mil moradores envolvidos foram deslocados para o Parque Proletário da Gávea, em função da tradição operária do bairro. Mas o novo endereço deveria ser provisório. O compromisso da administração pública era fixá-los num conjunto residencial a ser erguido ali mesmo, aos pés do Morro Dois Irmãos, no prazo máximo de seis anos. As pendengas políticas, porém, interromperam a execução do projeto que Affonso Eduardo Reidy, um dos mais célebres arquitetos do modernismo brasileiro, havia concebido.O Conjunto finalmente ficou pronto em meados da década de 1950, mas pouco tinha que ver com o complexo residencial que fora projetado. Dos mais de setecentos apartamentos e dos muitos equipamentos de lazer, de saúde, de educação e de outros serviços que apareciam nos desenhos originais, somente o prédio principal virou concreto. E esse não foi o único problema das obras.
A auto-estrada Lagoa-Barra, inaugurada em 1982, não atravessou apenas o bairro, mas também o próprio Minhocão, ignorando novamente o projeto de Reidy. Os atropelos, no entanto, não foram apenas na engenharia. Os velhos vícios da política brasileira acabaram por transferir a maioria das unidades habitacionais para funcionários da máquina pública do estado da Guanabara, enquanto as famílias do Parque Proletário que não foram contempladas, uma vez desalojadas e sem destino seguro, ficaram suspensas no ar. Infeliz ironia a de que muitas delas tiveram de procurar abrigo na Cidade de Deus!
Mesmo o Minhocão parecia flutuar na Gávea. Vizinho do suntuoso Jardim Pernambuco, no Alto Leblon, e tão próximo de algumas das mais importantes referências culturais e sociais da elite do Rio de Janeiro, como o Jóquei Clube e a PUC-Rio, ele desafiava o seu entorno. Tanto teve de lutar contra estereótipos que dominou a arte da esquiva, e ainda que estivesse ali, cimentado no chão da Zona Sul, encrustado na pedra e na paisagem, não estava mais em lugar algum. Não demorou para que fosse um forasteiro em seu próprio território. Associado à violência, à desordem, ao barulho e à sujeira, o Minhocão foi apropriado de maneira preconceituosa pelo imaginário de muitas pessoas. Nos últimos anos, ainda que muito lentamente, os cariocas começam a conhecê-lo melhor. Cada vez mais pessoas o procuram para morar, suas repúblicas estudantis o ajudam a rejuvenescer e sua arquitetura já ganhou até o cinema. Mas o Rio de Janeiro ainda está tão longe!
"Levantado do chão", como o romance de José Saramago, o Minhocão ainda se ergue sobre a cidade que o levantou.
Pedro Fraga Vianna
Aluno de graduação do Departamento de História
Bolsista de IC/VRAC do Núcleo de Memória da PUC-Rio
Edição 251