Celebrar o Dia Mundial do Meio Ambiente em um contexto de pandemia é tomar consciência que temos diante de nossos olhos duas crises mundiais, que vêm gerando preocupações comprometedoras na vida do planeta onde habitamos. A primeira é a crise ambiental, que vem se intensificando nas últimas décadas, sobretudo a partir de sinais concretos nas mudanças climáticas e na destruição da natureza em nível global e local. A segunda é a crise sanitária pelo surgimento de novos patógenos, como é o caso do coronavírus, que afronta a ciência e desequilibra as relações sociais entre os seres humanos.
A ética, que se apoia nos hábitos (Hexis) e nos costumes (ethos), se vê diante de um impasse complexo e desafiador, pois como criar novos costumes diante de hábitos insustentáveis que foram se avolumando e tomando proporções além dos limites, tanto na casa comum planetária como nas inter-relações entre os seres humanos? Embora as duas crises estejam sendo enfrentadas com os avanços científicos e tecnológicos, ambas não podem ser superadas em curta escala de tempo, pois os problemas gerados vão além de nossa capacidade de resolvê-los de imediato. Feridas que provocamos nas alterações dos ciclos climáticos, nas dinâmicas hídricas, nas cadeias biológicas, nas intervenções sucessivas nos biomas e ecossistemas, na extinção de seres vivos, entre outras, já não podem ser tratadas com curativos paliativos, pois exigem tratamentos mais profundos e demorados.
Na Encíclica Laudato Si`, o Papa Francisco nos mostra a gravidade dessas feridas que provocamos na obra do Criador, traindo a nossa missão de guardiões do patrimônio criacional, legado este que Deus colocou em nossas mãos para ser administrado com sabedoria e responsabilidade. Infelizmente, os sucessivos avanços e recuos nas posturas políticas sobre o meio ambiente não têm permitido gerar uma cultura de consenso sobre a problemática ecológica, impedindo que as vozes proféticas, oriundas das sociedades e das religiões, sejam ouvidas com a seriedade que merecem. Curiosamente, as diferentes mediações na sociedade, tanto nas ciências como nas religiões, têm conseguido, por meio de um processo progressivo de conscientização e ações concretas, avançar e dar passos mais relevantes do que os acordos signatários assinados nos fóruns políticos nacionais e internacionais. A crise sanitária, agravada agora com a pandemia da COVID-19, vem gerando conflito ético entre a verdade cientifica e os comportamentos contraditórios de setores da política, refletindo em posturas antiéticas de grupos sociais que, ao ignorarem as recomendações preventivas da ciência, agem de maneira irresponsável, desprezando os princípios básicos da ética do cuidado e do bem comum.
Mergulhados entre essas duas crises, tanto a moral ambiental como a ética ambiental, que estão profundamente imbricadas, procuram resgatar os objetivos de normatizar os comportamentos individuais e coletivos, mantendo a esperança que somente por uma mudança de hábitos, que historicamente já se mostraram insustentáveis, é possível sonhar com novos costumes, mais condizentes com o patrimônio criacional e evolutivo, colocados em nossas mãos para serem responsavelmente administrados. Para tanto, teremos que percorrer um longo e árduo caminho, até atingirmos um patamar razoável de consolidação e consenso, o que não é fácil numa sociedade pluralista e multicultural, marcada pelo individualismo e por radicalismos extremistas de ideias e posturas.
Corremos o risco, pela ênfase exagerada na singularidade da liberdade, que gera o individualismo ensimesmado, de termos uma moral ambiental em que as pessoas individualmente constroem hábitos sustentáveis como o de reciclar, plantar, reduzir o consumo, modificar a alimentação, intensificar a relação com a natureza, usar tecnologias sustentáveis etc, porém, sem se preocupar com a ética ambiental, ou seja, com gestos e ações sociais que procuram transformar o modo de ser e agir na sociedade, numa verdadeira mudança social de mentalidade.
A ética ambiental tem como preocupação as mudanças e a criação de novos hábitos que possam gerar novos costumes na sociedade. A ética ambiental supõe que as relações plurais da liberdade humana estejam agindo articuladamente, envolvendo Deus Criador, os seres humanos e todas as espécies que fazem parte da Criação. Embora a moral ambiental gere comportamentos individualmente testemunhais e louváveis, se os mesmos não estiverem imbricados com a ética ambiental, acabam empobrecendo a dimensão socioambiental na sociedade. Uma ética ambiental, apoiada nos princípios da responsabilidade, do cuidado e do respeito, é o melhor caminho para conscientizar a sociedade de sua vocação de ser guardiã do patrimônio da casa comum que é o planeta onde habitamos, expurgando lentamente a pretensão ambiciosa de sermos donos e proprietários dos bens comuns, que devem ser compartilhados com todos que fazemos parte da grande aliança que o Criador fez entre todos os seres viventes após o dilúvio. “Eu faço uma aliança convosco, com vossos descendentes e com todos os seres viventes que estão convosco, para as gerações futuras...”(Gn.9,8-17).
Celebrar o Dia Mundial do Meio Ambiente é reconhecer as feridas que provocamos pelas inúmeras rupturas socioambientais na nossa casa comum planetária, gerando sérias consequências tanto para o equilíbrio ecológico como para a sociedade humana. Celebrar o Dia Mundial do Meio Ambiente num clima de pandemia é reconhecer com humildade que erramos na nossa relação com a natureza, desencadeando processos biológicos que afetam a saúde humana, além de ceifar milhões de vidas. Celebrar o Dia Mundial do Meio Ambiente é não trair a aliança realizada pelo Criador, procurando eticamente mudar hábitos insustentáveis, criando novos costumes sociais e ecologicamente mais justos e equilibrados. Celebrar o Dia Mundial do Meio Ambiente é levar a sério os conselhos proféticos do Magistério da Igreja, que tanto tem nos ajudado a avançar nos processos de conscientização sobre a nossa responsabilidade socioambiental. Que após esta avassaladora pandemia em que vivemos, possamos tirar muitas lições para as nossas vidas, mudando nossos hábitos, criando novos costumes, preservando a natureza, superando as exclusões sociais e ambientais, multiplicando a nossa solidariedade, aumentando a nossa esperança em dias melhores, e procurando olhar o mundo com os olhos de Deus: “E Deus viu que tudo era bom” (Gn. 1,25).
Padre Josafá Carlos de Siqueira, S.J. – Reitor da PUC-Rio