A recente eliminação na primeira fase da Copa América Centenário, diante do Peru, consolidou as feridas abertas na Seleção brasileira de futebol pelo 7x1 da Copa do Mundo de 2014. Desde então, foram duas eliminações precoces em competições continentais – em 2015, o Brasil caiu para o Paraguai nas quartas-de-final da Copa América –, um sexto lugar nas eliminatórias sul-americanas e a demissão do técnico Dunga, contratado logo após o vexame contra os alemães. Os resultados inexpressivos dentro de campo geraram impactos fora dele, como a perda do valor de mercado dos jogadores brasileiros e da popularidade do time canarinho junto à população nacional. De acordo com o jornalista, consultor esportivo e ex-presidente do Clube de Regatas do Flamengo Luiz Augusto Veloso, o déficit no valor da Seleção – que superou os R$ 60 milhões após o torneio mundial de dois anos atrás – pode ser explicado não só pelos problemas de dentro das quatro linhas, mas também por uma deficiência na gestão do esporte. Atuando ao lado da comissão técnica holandesa em 2014, Veloso usa sua experiência para avaliar o atraso no planejamento brasileiro:
– Existe uma carência na metodologia do futebol no Brasil. Durante o período em que acompanhei a Holanda como consultor, na Copa do Mundo, percebi o nível de dedicação do técnico Louis van Gaal. Ele estava o tempo todo em reunião com o restante da comissão, discutindo questões táticas, técnicas e físicas. Os profissionais lá de fora são verdadeiros executivos, que estudam constantemente a modalidade e suas equipes. Aqui, ainda resiste o costume de se basear no conhecimento já consolidado, e os treinadores não correm atrás de novos aprendizados.
Entre 2014 e 2015, houve uma redução de R$ 25 milhões na receita de patrocínio da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), segundo o consultor Pedro Daniel, da empresa BDO Brazil. Quatro dos principais patrocinadores abandonaram o barco, sendo substituídos por outras marcas que não conseguiram preencher por completo o rombo deixado. Daniel concorda com Veloso na hora de avaliar a razão da fuga de capitais. Para ele, o futebol brasileiro é um produto desvalorizado pelos erros administrativos:
– A CBF não obtém sucesso na mercantilização do esporte mais tradicional do país. O futebol tem extremo potencial de consumo, mas o fraco aproveitamento disso é reflexo do fato de os clubes europeus lucrarem mais que os brasileiros, mesmo em território nacional. Hoje, o foco da atenção está no exterior.
A fraqueza apontada por Daniel pode ser provada pelo ranking de vendas de camisas. Dos dez times que mais lucram com esse tipo de comércio no Brasil, seis são europeus. O Barcelona, ancorado por grandes estrelas como Lionel Messi, Luis Suárez e Neymar, lidera a lista. Na opinião do professor da FGV Bernardo Buarque de Hollanda, a televisão também tem participação efetiva no enfraquecimento do valor do futebol nacional como produto, abrindo espaço para quem vem de fora:
– Um fator menos alardeado é a onipresença da televisão na cobertura futebolística. Hoje há uma série de atrativos, com grandes campeonatos internacionais sendo cobertos pela TV, de sorte que a oferta de identificação do amante do futebol com a prática esportiva se multiplicou. A pulverização do espetáculo faz com que haja um desinteresse em acompanhar as equipes nacionais.
O campeonato de clubes com maior audiência do mundo é a Liga dos Campeões da Europa, sendo que as finais das últimas três edições tiveram quase 200 milhões de telespectadores. Jogadores brasileiros fazem parte das principais equipes desta e de outras competições importantes do exterior, revelando mais uma faceta dos problemas do futebol nacional. Os clubes formam os jogadores, mas não conseguem segurá-los por muito tempo, devido à deficiência econômica diante dos times estrangeiros, como observa o sociólogo Ronaldo Helal, professor da Uerj, especializado em cultura do futebol:
– As equipes brasileiras, seja pela crise que o país enfrenta ou pelos próprios erros na gestão financeira, não conseguem competir com equipes do exterior. Os salários oferecidos lá fora são bem maiores, e os jogadores optam por sair cedo do Brasil, não criando identificação com os torcedores daqui. Isso leva, sem dúvidas, a um desinteresse também pela Seleção.
A frieza dos torcedores em relação à Seleção cresce também devido ao desempenho técnico dentro do campo. A magia que existia nas seleções passadas, como descreve o professor da PUC-Rio Luiz Léo, foi perdendo a essência a partir de 2006. Diferentemente dos times antigos que agrupavam os melhores jogadores do mundo eleitos pela Fifa, como Romário (1994) Ronaldo (1996, 1997 e 2002), Rivaldo (1999), Ronaldinho Gaúcho (2004 e 2005) e Kaká (2007), a Seleção Brasileira, hoje, tem Neymar como único expoente. De acordo com Luiz Léo, com exceção do atleta do Barcelona, “nenhum outro jogador ocupa espaço de protagonismo no futebol mundial, sendo todos secundários”.
– Desde 2006, a Seleção tem enfrentado uma crise em relação aos seus jogadores. Isso porque há uma perda de referências que representam e engrandecem a imagem do time, o que é claramente refletido em campo – declara o professor.
Associada à perda de referências, ocorreu também a deterioração da identidade brasileira de jogar. No artigo Futebol-arte e consumo: as narrativas presentes na campanha “Ouse ser brasileiro”, de Ronaldo Helal, Filipe Mostaro e Fausto Amaro, é exposta a ideia de que a singularidade do futebol brasileiro é resultado de alguns elementos específicos. Ronaldo Helal, coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Leme), afirma que a miscigenação da nação é o principal aspecto para o surgimento do chamado “estilo brasileiro de futebol”. A consolidação dessa narrativa, segundo Helal, pode ser vista, por exemplo, com a imagem construída por Pelé e Garrincha, principalmente com o bicampeonato mundial conquistado pela Seleção em 1958 e 1962. A maneira brasileira de jogar é marcada pela criatividade, improvisação e malemolência que criam um produto único, mas que se perdeu com o passar do tempo e com a globalização do futebol.
Mudanças necessárias passam pelo futebol doméstico
A redução na popularidade da Seleção fica ainda mais evidente comparada com períodos passados. Durante a ditadura militar, por exemplo, um dos instrumentos de propaganda política e exaltação nacional utilizados pelo governo foi o time campeão do mundo em 1970. Hoje, no entanto, são poucos os brasileiros que acompanham de fato o trabalho desenvolvido no esquadrão canarinho. De acordo com o levantamento realizado em maio pelo Instituto PróPesquisa de São Paulo, 91% dos mil consultados declararam estar “pouco ou nada interessados” no desempenho da Seleção comandada então pelo técnico Dunga.
Após a eliminação precoce da Seleção da Copa América de 2016, Dunga foi demitido, sendo substituído por Tite. Apesar de ser considerado tiro certeiro pelos torcedores e especialistas, o novo treinador encara uma dificuldade que vai além de jogadas ensaiadas e gols bonitos: a de resgatar o interesse do torcedor, principalmente dos jovens. Para Luiz Léo, a mudança no comando “pode ser o primeiro passo para retomarmos o futebol brasileiro que conhecemos e admiramos, mas não é suficiente” para recuperar o apoio do povo e criar um time competitivo.
– É preciso que haja reformas na gestão do esporte, desde mudanças na formação de jogadores, preparando-os melhor antes de vendê-los ao exterior, até a valorização do produto Campeonato Brasileiro, que é a porta de entrada para descobertas de talentos e desenvolvimento do gosto do público. Acredito que esses aspectos motivarão a melhora do desempenho técnico, com o retorno das conquistas, do respeito, da popularidade e do valor econômico – aponta o professor.
Ronaldo Helal acredita ainda que seja necessário escalar na Seleção rostos conhecidos dos clubes brasileiros. Essa seria uma maneira de resgatar a identificação dos torcedores e intensificar o sentimento de nacionalismo, para que não apareça somente de quatro em quatro anos, na época da Copa do Mundo.