Laicismo ou laicidade?
25/06/2007 14:00
Pe. Jesús Hortal Sánchez, S. J.

Laicismo e laicidade, dois termos que não são sinônimos, são o tema do artigo do Reitor. Vivemos uma época de laicização em que parece haver um esforço para ocultar o signo religioso através do princípio incontestável da separação entre Igreja e Estado. Medidas claramente anti-religiosas mostram-se cada vez mais evidentes e parecem abrigar um relativismo radical e laicista que busca esconder, em uma capa de tolerância, a obrigação de calar as próprias convicções, analisa o Reitor.

Vivemos uma conjuntura geral, dentro do chamado mundo ocidental, de laicização sistemática da vida pública. O princípio inquestionável da separação entre Igreja e Estado está transformando-se num esforço por ocultar por completo, ou, pelo menos, disfarçar tudo quanto possa parecer signo religioso. Isso ficou bem evidente na discussão do projeto de Constituição européia. Apesar dos apelos do Papa João Paulo II, não se conseguiu que, no seu preâmbulo, se fizesse qualquer referência às raízes cristãs do velho continente. Havia no texto, que acabou por ser rechaçado, apenas uma alusão a uma cultura comum, que resultava inidentificável. A identidade européia encontrava-se tão diluída que dava a impressão de ter caído do alto ou brotado por geração espontânea. A mesma questão do caráter laicista da sociedade apareceu, de modo mais virulento, na polêmica desencadeada na França em torno do véu das muçulmanas. Mais do que de corrigir uma aparente inferioridade da mulher nas sociedades islâmicas, que seria incompatível com os direitos humanos defendidos pela nação francesa, tratava-se da visibilidade, na vida pública, de símbolos religiosos de qualquer espécie. Por isso, foram proibidos, nas escolas públicas francesas, não apenas os véus, mas também os kipás judaicos e as cruzes "grandes" cristãs. A mesma polêmica continua viva na Itália e na Espanha em relação à presença de crucifixos nas escolas públicas e nas salas dos tribunais.

Entre nós, essa questão ainda se manifesta de modo muito incipiente, mas não está completamente ausente. Atualmente, com o pretexto das chamadas políticas de inclusão, questiona-se qualquer modo de agir ou de pensar que signifique, não apenas exclusão, mas simples diferenciação. Não se tolera que segmentos da sociedade afirmem claramente as suas convicções, que os diferenciam de outros grupos. Nem sempre percebemos isso com clareza. Bem típico é o caso do ensino religioso. A nossa constituição fala explicitamente de "ensino religioso", não de cultura religiosa, de sociologia ou de psicologia da religião. No entanto, espalhou-se a mentalidade de que deveria ser dado um ensino aconfessional, sem qualquer conotação particular. Ora, "religioso" só tem sentido na medida em que faz referência a uma comunidade que professa uma crença, celebra um culto de adoração a uma divindade e observa normas de conduta determinadas. Religião não é um sentimento vago nem uma prática da tolerância; é muito mais; é profissão de fé e vivência em comunidade. Sem dúvida, o ensino religioso deve ser respeitoso para com os membros de outras confissões, mas não deve ser diluído num indiferentismo nem num relativismo radical. A criança tem direito ao ensino de valores claros e firmes, de acordo com a escolha da família. O ensino religioso deve ser plural, mas não pode ser aconfessional, sob pena de perder a sua essência.

Mas essa tendência laicizante não se reflete apenas no campo estrito da manifestação da fé e das crenças; tem também os seus reflexos no terreno da moral. Precisamente é essa problemática de caráter ético e moral que está presente, com mais força, entre nós. Sob o pretexto da neutralidade política, que seria exigida pelo seu caráter transcendente e por sua separação do Estado, pretende-se que a Igreja, não se manifeste, nem mesmo enunciando os princípios gerais da moralidade que incidam em questões que possam ser identificadas como de caráter político. Em assuntos tão delicados como o aborto, a união homossexual ou a eutanásia, há amplos setores que desejariam um silêncio total da Igreja. Chegou-se ao extremo de ter sido apresentado um projeto de lei, na Câmara dos Deputados, considerando crime a manifestação de juízo moral sobre a conduta homossexual. Além de ferir claramente o princípio constitucional da liberdade de pensamento, caso seja aprovado tal projeto, impediria que o Catecismo da Igreja Católica ou certas manifestações do Papa possam ser difundidos no Brasil, pois esses documentos contêm uma condenação explícita das práticas homossexuais. Padres e catequistas correrão o risco de prisão e condenação, se expuserem a doutrina do magistério eclesiástico sobre a matéria.

No mesmo sentido, não podemos esquecer que, para a audiência pública promovida pelo STF, em torno da utilização, em pesquisas, de células tronco embrionárias, foram convocados apenas cientistas atuantes nessa área, mas nenhum especialista em bioética. A voz da Igreja foi considerada dispensável e o procurador Fontelles, autor da ação pública de inconstitucionalidade contra a lei de bio-segurança, acusado de servilismo à Igreja.

Mas o radicalismo laicista, que claramente se manifesta nessas tendências, encontra-se disfarçado, no Brasil, sob a capa da tolerância e do respeito. Não é considerado "politicamente correto" demonstrar convicções claras e fé firme na Igreja. Basta uma crença difusa, flutuante, sem adesão formal a um grupo ou comunidade determinado. Pode-se dizer que essa tendência laicizante já tinha um chão preparado pelo individualismo sincrestista tão arraigado na nossa tradição. Cada um fabrica o seu próprio credo; cada um constrói a sua própria moral. É perfeitamente conhecido que, na última década, dentro do nosso panorama religioso, o grupo que mais cresceu percentualmente não foi o dos evangélicos, mas o daqueles que se proclamam "sem religião" e cresceu precisamente naqueles ambientes onde a penetração pentecostal e das religiões afro-brasileiras mais se espalharam, como uma espécie de efeito colateral da mudança irrefletida e apressada de confissão religiosa. Creio que, para explicar esse fenômeno, pode falar-se de "cansaço institucional". Após peregrinar pelas mais diversas denominações, reforça-se entre os que passaram por elas, a tendência ao subjetivismo e ao tipo que poderia ser qualificado de "religião de supermercado", com o consumo de uma variada gama de produtos religiosos, sem fidelidade a uma marca determinada. Esse fenômeno foi muito bem detectado pelo estudo do professor da PUC-Rio César Romero, nas suas análises da pertença religiosa, já expostas em anos passados em Assembléia da CNBB. Aliás, fenômenos semelhantes se detectam nos outros dois países da América Latina em que o avanço pentecostal foi maior, o Chile e a Guatemala.

O que é novo entre nós e nos diferencia é que, perante essa fragmentação religiosa crescente, espalha-se a mentalidade de que a tolerância e o respeito implicam obrigação de calar as próprias convicções, de ocultar a própria fé. Apela-se para o "republicanismo" como uma matriz do Estado brasileiro e, em seu nome, questionam-se os feriados religiosos, o ensino confessional, os monumentos da fé e até os catecismos das Igrejas. É verdade que estamos ainda longe de uma generalização do velho e caduco laicismo militante de cunho maçônico tão evidente na França, mas ele não está ausente; antes eu diria que está vivo e crescente na nossa sociedade. A solução parece estar na distinção entre a atitude beligerante do laicismo e a dialogante da sã laicidade. O laicismo ignora o universo religioso; a laicidade promove o entendimento mútuo, o diálogo e a colaboração para o bem comum, mas sem ingerências da Igreja no Estado, nem do Estado na Igreja. É impossível separar plenamente o político e o religioso, porque ambos são humanos e a vida humana possui uma unidade indestrutível. Por isso, dialogo, entendimento, colaboração com respeito da esfera de cada um é o único caminho realista.

Pe. Jesús Hortal Sánchez, S. J.
Reitor da PUC-Rio

Edição 188