No dia 9 de outubro último, o samba acumulou mais um status. Além de identidade nacional, símbolo de carioquice e voz do morro, ele agora é Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. O decreto, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), visa a resguardar as tradições do ritmo, que se desenvolveram, sobretudo, a partir de bases orais.
O samba surgiu nos anos 20 do século passado, na Praça Onze. De lá para cá, ele alcançou os morros, expandiu-se para os subúrbios do Rio, e viajou de Norte a Sul do Brasil acompanhando a radiodifusão dos anos 30. Para retratar a relação do samba com a sociedade brasileira, a TV PUC produziu o especial O Brasil na Avenida, exibido pela UTV e TV Senado. Velhos bambas e especialistas lembraram canções, carnavais da Mangueira, da Beija-Flor, do Salgueiro e da Império Serrano, e episódios de repressão envolvendo as ditaduras de Vargas e a militar.
Neta do fundador da Mangueira Cartola, e vice-presidente do Centro Cultural Cartola, Nilcemar Nogueira é proponente do projeto aprovado pelo Iphan.
– A cultura é viva, mutante, você não pode propor jamais um engessamento. Mas tem a essência que não se pode perder. Se ela se perder, se perde a identidade, as divisas do país. Para quê o sujeito vai sair lá de Londres, do Japão, se ele pode pegar a sua receita e fazer? – questiona Nilcemar.
Nascida e criada na Mangueira, a neta do patrono da escola critica a postura dos jurados dos desfiles de escola de samba nos últimos anos. Famosa pelo peculiar surdo sem resposta, a bateria da Mangueira tem recebido notas mais baixas por falta de criatividade. A carnavalesca Maria Augusta Rodrigues acredita que a formatação dos desfiles e da música é inevitável, mas compromete o resultado final.
– Muitas vezes nós vemos sambas ganharem sem merecer, ou seja, em detrimento de composições melhores, de letras melhores, por causa da política interna da escola, por problemas de interesse da diretoria, e até por patrocinadores que recentemente começaram a bancar a realização dos desfiles, critica Maria Augusta.
Mas não foi apenas o espetáculo que interferiu sobre o samba. Ainda nos anos 20, a identidade negra do ritmo e a proximidade com o candomblé geravam repúdio.
– Aquela música percussiva tinha forte origem nos cultos africanos. Para um país que se pretendia cada vez mais à moda européia, e, por tabela, cada vez mais branco, aquilo não pegava bem, observa o jornalista Luiz Fernando Vianna.
Na era Vargas, o projeto de Nação deslocou-se do erudito para o popular. Sambistas como Ismael Silva, Cartola e Paulo da Portela perceberam que deveriam organizar seus grupos e blocos em escolas de samba para ter mais aceitação do Estado. Nos anos 60 e 70, composições, como Heróis da Liberdade, samba-enredo da Império Serrano de 1969, também passaram pelo crivo do governo ditatorial.
– O pessoal da ditadura achou que fosse uma indireta, mas na verdade foi feito para a exaltação da raça negra. Mas aquela frase "a revolução em sua legítima razão" enrolou tudo. Aí teve que trocar "revolução" por "evolução", lembra Cidiomar Clóvis Barbosa, o Mazinho, presidente da Velha Guarda da escola, que estava naquele carnaval.
A intérprete Beth Carvalho elogia a medida do Iphan. Nos anos 60 e 70, ela freqüentava escolas de samba e o Teatro Opinião, em Copacabana, onde sambistas do morro e cantores da MPB – na maioria da Zona Sul – dividiam o palco, mesmo sob os olhares do regime militar. Para ela, o samba não pode virar folclore, como os outros ritmos brasileiros, já que é, por si só, denunciador da realidade brasileira.
– "Lata d´água na cabeça, lá vai Maria". A classe média usa lata d’água na cabeça? E o rico? E por que será que a Maria usa lata d’água na cabeça? Essa frase está clara. Não precisa de hip-hop, nem de rock, para denunciar, resume a cantora.
Edição 194