Cronistas de grande influência na imprensa escrita, no rádio e na televisão comentaram, de forma pessoal, a experiência que tiveram com a personalidade de D. Eugênio Salles. Isto levou mais de um leitor ou espectador a se espantarem que jornalistas guardassem lembranças tão pessoais. Sensações de humanidade salpicaram então a cobertura da imprensa, que deste modo não se deixou sucumbir aos obituários de pessoas mais velhas, que ficam engavetados para serem usados um dia. E a figura dele, aqui ou ali, aparece como foi em vida – inovadora, serena, mas muito firme. Uma pessoa que ouvia bem e decidia com rapidez e firmeza, sempre orientada por valores internalizados. O homem íntegro se delineia e organiza na nossa memória, o pioneiro da modernização que não abriu mão da tradição. No sentido mesmo da ortodoxia, o protótipo do indivíduo inner oriented, segundo David Riesman, desperta a admiração daqueles que convivem de perto com a fragmentação e o rompimento das próprias convicções. Como escreveu Walter Benjamin, a morte tem esta particularidade: transmitir experiência, rever caminhos e estabelecer um balanço de vida.
Morreu D. Eugênio, aos 91 anos de idade. Ordenado em 1943, foi sagrado bispo em 1953, com apenas 33 anos, idade em que muitos se portam como adolescentes. Foi arcebispo do Rio de Janeiro por 30 anos, cardeal desde 1969, e atravessou os principais momentos da história contemporânea do país. Nascido no sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte, ocupou a diocese de Natal com o cargo de Administrador Apostólico, e esteve intimamente ligado à fundação da SUDENE, em 1959. Neste ano, realizou-se, em Campina Grande o primeiro encontro dos bispos do Nordeste, criando-se um órgão para coordenar as ações da Igreja na região, o Secretariado Episcopal, com sede em Natal, embrião da estrutura da CNBB que, logo em seguida, se organizaria em secretariados regionais.
Quando, em 1965, D. Eugênio foi transferido para Salvador, também no cargo de Administrador Apostólico, vinha para trabalhar junto a D. Augusto, Cardeal da Silva, arcebispo de idade avançada, há anos na sé de Salvador. Precedido da fama de ter atuado com grupos de base, de ser um bispo muito ligado a D. Hélder, com clara opção preferencial pelos pobres, e ser bom administrador. Nesse momento, ele incorporava os anseios de um grande número de leigos e de jovens padres que buscavam a atualização da Igreja e a vivência do Concílio Vaticano II, em contraponto ao clero mais velho e acomodado que não podia absorver todo o élan de mudança que se sentia na cidade. D. Eugênio chegava a uma Bahia – como os baianos ainda se referiam a Salvador – que sofria modificações econômicas com a implantação dos pólos petroquímicos e industriais de Aratu e Camaçari. Nesse momento, surge – como descreveu o geógrafo Milton Santos – uma “nova classe média”. A cidade convivia, ao mesmo tempo, com uma explosão criativa de talentos formatados pela Universidade Federal do reitor Edgar Santos, que absorvia parte da energia da antiga classe média e desenvolvia atividades culturais e políticas com a participação de leigos ligados à Ação Católica, atuantes em torno do convento dos beneditinos, dos jesuítas e de alguns padres seculares. Alguns desses jovens estavam prestes a radicalizar suas ideias, voltando-se para uma militância política marxista. A cidade vivenciava um contraditório anseio por transformações, mas convivia com a estagnação de certos setores e a ausência de racionalidade moderna/industrial. Era uma época de muita transformação, pensavam-se as teorias desenvolvimentistas e davam-se os primeiros passos em direção a uma administração planejada.
Em Salvador, o jovem bispo de 44 anos não vai morar no palácio episcopal e sim na casa destinada ao capelão do Convento das Mercês. Anos mais tarde, irá morar em casa destinada ao Capelão do Colégio das Sacramentinas; conduziria seu próprio carro, um pequeno fusca; usaria clergyman e, em madeira, a cruz peitoral e o anel episcopal. Numa cidade ainda protocolar e engessada por convenções, essa aparência fará diferença, em contraste com monsenhores que usavam capelo e pelerine. No início de sua investidura como Administrador Apostólico, surgiram até manifestos apócrifos de alguns padres recusando sua liderança, mas aos poucos e com grande vitalidade, ele organiza a arquidiocese. Com imensa habilidade e competência gerencial, recebe apoio e recursos de diferentes organizações católicas internacionais, e atrai um grande número de padres, freiras e até leigos da Itália, da França, do Canadá e dos Estados Unidos, que irão trabalhar nas áreas mais carentes e no entorno de Salvador.
No imaginário da época, as noções de desenvolvimento e de mudança social convivem com o comprometimento com a realidade brasileira e as necessárias reformas estruturais, naturalmente permeadas pelos conceitos de responsabilidade social e autenticidade. Entre os jovens militantes, eu e outros iremos trabalhar muito de perto com D. Eugênio no treinamento de líderes e na comunicação da arquidiocese.
Mas nada é linear: naquele momento, ocorreram os ditos “saltos qualitativos”: a Ação Popular, fundada em 1962, e partidos políticos de orientação marxista absorvem, aos poucos, algumas lideranças jovens católicas. A hierarquia resolve então suspender a Ação Católica, lacrar sua sede no Palácio da Sé, e D. Eugenio diz que iria publicar a suspenção na imprensa. Lembro-me que o procurei, em seu gabinete, para discutir as medidas. Se não podia retroceder, pelo menos que não publicasse na mídia, ousei ter-lhe dito. Qualquer declaração oficial, naquele momento, soaria como uma denúncia de comunismo, e era uma questão delicada deixar os jovens desprotegidos, já que, em verdade, nem todos estavam embarcando na luta armada ou filiando-se a partidos políticos. Ele me ouviu pacientemente e retrucou que sendo um bispo tinha de avaliar o conjunto dos elementos em jogo, ele era o bispo, e deveria agir como tal.
A Ação Católica foi mesmo extinta, mas sem qualquer declaração na mídia. Passados alguns dias, o padre belga Charles Moeller, autor de livros sobre literatura publicados no Brasil, vem a serviço da Santa Sé investigar sobre o fechamento da Ação Católica. D. Eugênio me pede para mostrar a cidade ao padre, e até hoje acredito que ele queria que eu continuasse a discutir o assunto.
Deixo a Bahia em 1969, e volto a encontrar D. Eugênio, já como professora da PUC- Rio, a partir dos anos 80, fazendo parte de cursos de atualização e encontros de reflexão, aqui organizados por Miguel Pereira. Muito antes de ter tomado conhecimento pela imprensa de suas ações em favor de perseguidos políticos, fui professora de um ex-guerrilheiro colombiano, que estava sob sua proteção. Nos anos 90, como diretora do Departamento de Comunicação Social, junto com Miguel Pereira e Fernando Ferreira, e introduzidos pelo Pe. Dionel Amaral, S.J, fiel escudeiro do Cardeal, solicitamos sua anuência para um programa semanal de rádio, realizado pelos alunos de comunicação, na Radio Catedral, e de imediato, ele aceitou. E essas e muitas outras lembranças parecem confirmar o sentido de seu lema, publicado, sensivelmente, por inúmeros jornalistas ao escrever sobre a sua morte: “De muita boa vontade darei o que é meu, e me darei a mim mesmo pelas vossas almas, ainda que, amando-vos mais, seja menos amado por vós (2 Cor 12, 15)”.
Edição 258