Catadores de esperanças: Trabalho e vida no aterro de Gramacho
25/09/2008 18:00
Carol Jardim e Sarah Lemos / Foto: Gisele Leitão

No maior aterro controlado da América Latina, catadores convivem em condições insalubres de trabalho na busca pela sobrevivência. As histórias de “Seu” Valter, Alba Valéria, Joe e Alexandra são exemplos de superação. Em meio ao lixo, eles fazem amizades e encontram força para continuar, mesmo com a previsão de fechamento do aterro. Iniciativas como a da professora Valéria Bastos, da PUC-Rio, procuram instruir e organizar os catadores e dar a eles uma perspectiva de profissional ambiental.

Há 26 anos, Valter dos Santos vai para o trabalho de bicicleta. A viagem, que dura uma hora, termina em Duque de Caxias, no Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho. Hoje, com 58 anos, ele é um dos 1.300 catadores de materiais recicláveis cadastrados no aterro. Com os dias contados, o local deixará saudades em trabalhadores que, como Seu Valter, dependem do lixo para sobreviver. “Já sinto falta só de falar que vai fechar, porque é daqui que tiro meu sustento”, lamenta.

 

De 1978 a 1996, o bairro Jardim Gramacho abrigou um dos maiores lixões da América Latina. Seguindo as exigências da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), o lixão virou um aterro controlado, em que os resíduos não ficam a céu aberto, causando menos impacto ao ambiente. No local, a Comlurb construiu barreiras de proteção, impedindo que o chorume se expanda e polua o lençol freático. Apesar de ter o término de suas atividades previsto para 2004, no fim de sua vida útil, Gramacho continua funcionando.

 

Para José Araruna, professor de Engenharia Ambiental da PUC-Rio, os erros em relação ao aterro já começaram na escolha do local: sobre um manguezal, ao lado da Baía de Guanabara e dos rios Sarapuí e Iguaçu. De acordo com a Feema, lixões não podem ser construídos perto de portos, comunidades e recursos hídricos. Outro problema encontrado é o risco de acidentes com trabalhadores. “Os perigos são enormes por ser um local muito insalubre, onde várias pessoas catam ao lado de máquinas pesadas. Não é nada bom que existam catadores na frente de serviço”, diz Araruna. Antes de o lixão se tornar aterro controlado, havia ainda perigo de contaminação pelo lixo hospitalar, que hoje é separado do lixo residencial, além do risco de combustão do gás. Nos dois aterros sanitários que substituirão Gramacho, em Paciência, na Zona Oeste, não haverá catação.

 

Considerada a mais bem humorada do aterro, Alba Valéria Pereira, conhecida como Latão, de 32 anos, trabalha em Gramacho há doze. Ela faz parte da CoopJardim, cooperativa que organiza um grupo de catadores e promove palestras informativas. Segundo Alba, vale a pena trabalhar lá. Apesar de gastar quase R$ 20 de passagem para São João de Meriti, onde mora, ela consegue receber cerca de R$ 100 por dia.

 

Além do trabalho, os catadores acabam se tornando amigos, como Alba e Alexandra Gomes, de 36 anos, que se conheceram no local. Há catorze em Gramacho, Alexandra nunca se imaginou catando lixo. “Para qualquer um é estranho no começo. Ninguém escolhe trabalhar aqui. No início, tinha muito nojo, mas a gente se acostuma”, conta a ex-doméstica, que tem nove filhos. Alexandra lembrou histórias de pessoas que omitem ser catadores, como um colega que dizia à esposa trabalhar em uma construtora.

 

– Nós somos associadas à sujeira, mas somos limpas, fazemos a unha, nos arrumamos como outra pessoa qualquer, saímos, vamos para o pagode, gostamos de nós divertir, garante.

 

Valter, Alba Valéria e Alexandra em Gramacho
No aterro, que recebe nove mil toneladas de lixo por dia, além de material reciclável, muitos detritos são reutilizados. “Recolhemos alimentos sim, tem até comida de supermercado que pode ser aproveitada, assim como roupas e outros objetos”, diz Alexandra. Enquanto a amiga falava, Alba Valéria brinca: “Essa aqui fica bonita só de lixo. Acabei de achar um vestido e já vou vender pra ela por R$ 5”, contou a catadora, enquanto comia um chocolate que encontrou ali.

 

Com o objetivo de acabar com o preconceito em relação aos “catadores de lixo”, a professora Valéria Bastos, do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, tenta fazer com que a catação, categoria reconhecida pelo Ministério do Trabalho, seja vista como profissão. “Não se chama mais de ‘catadores de lixo’, porque o lixo carrega um estigma, é o rejeito, aquilo que ninguém quer”, defende. Valéria trabalha para que os catadores de materiais recicláveis se organizem, busquem seus direitos e se compreendam como profissionais ambientais.

 

Enquanto ainda funcionava o lixão, qualquer pessoa podia subir aos locais de catação. Com a criação do aterro, os catadores são cadastrados e sobem em horários específicos. Eles são divididos entre os autônomos e os que fazem parte da associação e das cooperativas, além de mais ou menos quatro mil trabalhadores não-oficiais. Com a proposta de promover uma saída após o fim das atividades no local, a Associação de Catadores do Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho (ACAMJG) formulou uma política pública de coleta seletiva, para tirá-los das más condições de garimpo in natura. Presidente da ACAMJG, Seu Valter recebe aproximadamente R$ 30 por dia e não vai receber aposentadoria. “Estamos nos organizando e buscando conhecimento, para ter emprego quando isso aqui fechar”, conta Seu Valter.

 

A professora Valéria e quinze catadores de Gramacho participaram do 7º Festival do Lixo e da Cidadania, em Belo Horizonte, entre os dias 2 e 5 de setembro. No evento eles entregaram ao presidente Lula e ao Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias, um projeto de lei que propõe aposentadoria e seguridade social dos trabalhadores.

 

Apesar da catação, o desperdício é recorrente em Gramacho. Apenas 2% do lixo que chega no aterro é vendido para reciclagem. O professor Araruna conta que o Rio de Janeiro gera um quilo de lixo por habitante por dia, o maior índice do país. “Uma parte poderia ser reciclada. Há condomínios que separam o lixo e vendem, mas são práticas que começam na própria comunidade”, afirma Araruna. Para Valéria, os municípios devem ter uma política pública de coleta seletiva, porque hoje o lixo separado em casa é misturado no caminhão. “É preciso trabalhar uma conscientização ambiental, que é muito rudimentar. As pessoas ainda jogam lixo no chão”, acentua Valéria.

 

Mesmo sentindo vergonha de trabalhar com o lixo, Joe da Silva, de 31 anos, está há quinze no aterro, intercalando com outras atividades, e prefere a catação pela vantagem de fazer seu próprio horário e pela vista da Baía de Guanabara à noite. “Minha mãe dizia que se eu não estudasse, ia catar lata, e olha onde eu estou”, lembra Joe, que estudou até a 1ª série.

 

Edição 206

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