Dez anos sem ele
18/06/2020 20:28
Gustavo Magalhães

Durante a vida, José Saramago criou um estilo próprio de escrita, de inovação na sintática e na pontuação

Arte: Nina Rosenblit 


No dia 18 de junho de 2010, morria de leucemia José Saramago, único escritor de língua portuguesa a ganhar um prêmio Nobel de Literatura. Conhecido pela latente subversão da forma e pela ambiguidade entre retratações históricas e criticismo dentro dos romances, o autor mudou durante toda a carreira literária. Mas, segundo o professor Sergio Mota, do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, Saramago manteve uma perspectiva de revelar a desumanização que caracteriza a civilização atual. Dez anos após a morte dele, o mundo vive uma pandemia, situação descrita no livro Ensaio Sobre a Cegueira, obra que retrata um surto que deixa as pessoas cegas, classificado pelo autor como a “cegueira da razão”.

Sergio Mota explica que, nesse livro, o mais conhecido do autor, não existe um narrador na maneira clássica e muito menos as regras usuais de pontuação e acentuação. Algo que provém da filosofia do próprio escritor, que salientava a dinâmica da língua como superior à forma. Para ele, o destino da palavra é ser ouvida e, quando escrita, ela está congelada, observa Mota.

- Aos 53 anos, Saramago começou a se lançar à escrita ficcional. E tinha um estilo muito próprio de oralização da escrita, como se fosse uma escrita de viva voz, como se os personagens estivessem sempre numa roda de amigos. Isso ocasiona um ritmo igual ao da fala, sem os cerceamentos comuns e palavras obrigatórias dos verbos que nos obrigam os travessões. E, com essa estilística, ele desrespeitou de forma brilhante e ostensiva as regras sintáticas e de pontuação.

As obras do escritor continuam em processo de edição e tradução para serem distribuídas em diversos países. Só neste ano, os romances do autor português já foram publicados na Bielorússia e traduzidos para a língua basca, para o malaio, para o esloveno, para o turco e um ganhou versão em audiobook. Em entrevista ao programa Roda Viva, em 2003, Saramago demonstrou revolta em relação ao que chamou alienação do povo e, acrescentou, a missão do escritor é a de não calar-se. Segundo ele, isso deveria ser um compromisso de todos com consciência.

Saramago e a língua

A professora Meg Amoroso Mesquita, do Departamento de Letras da PUC-Rio, comenta o fenômeno Saramago na literatura que, segundo ela, enxergava a literatura como um elemento da exaltação da língua e da imaginação. De acordo com a professora, o escritor alcançou o status de autoridade literária por ter sido fiel aos próprios valores. O fato de Saramago ter reconfigurado a própria expressão provoca nos leitores a obrigação de repensar como os fatos são vistos, realça a professora.

— As quebras de forma que ele criava e fazia, geravam uma escrita e leitura também asfixiantes. E os espaços em branco entre as palavras são os únicos momentos que o leitor tem para respirar. Saramago ousou e fez da escrita o próprio conteúdo.

A linguagem de um povo é a maneira de pensar o mundo e o código linguístico está relacionado à constituição das pessoas. O vencedor do prêmio Nobel foi impactante para que a língua portuguesa passasse a ser valorizada. Meg detalha que, de maneira geral, surgiu um orgulho maior em relação à língua portuguesa em uma proporção que nunca havia existido.

— A partir de Saramago, a gente pôde evocar mais o orgulho da nossa escrita, mesmo que ela sempre tenha sido desprestigiada. E acredito que Saramago vai permanecer atual por muito tempo, porque a maneira dele escrever é muito visceral, fala muito ao interior de cada um. A escrita dele tem menos chance de se corroer.

José de Sousa. Saramago?

O nome inicial de José Saramago não incluía Saramago. O menino se chamaria José de Sousa, mas, por causa de uma arbitrariedade do funcionário do Registro Civil, foi adicionado um novo sobrenome ao português. Saramago é uma planta que, nos tempos de carência em que viveu na infância, era servida como alimento em cozinhas de pessoas pobres.

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