Uma história para se vestir
05/11/2008 14:00
Aline Veloso / Ilustração: Diogo Maduell / foto: Ludmila Zorzi

Inspiração política, religiosa e cultural no mundo da moda. Consumidores usam roupas e desconhecem a origem das peças.

 

Designers estudam num momento histórico a inspiração para montarem suas criações, e grande parte de seus consumidores desconhece o significado por trás de cada peça que utiliza. Os estilistas recebem as amostras de tecidos e pensam numa narrativa que predominará na coleção. Por isso, o lançamento das tendências de moda é iniciado pela indústria têxtil, setor que determina a cartela de cores e os tecidos que irão sobressair nos desfiles das grandes marcas, e consequentemente, nas confecções em massa.

 

A moda atual está voltada ao apelo étnico. A proposta persiste na passarela para o verão 2009, e a idéia de sobrepor looks de diferentes culturas no mesmo modelito instiga a procura da procedência de cada peça. Um exemplo é o lenço de pescoço. A versão do keffiyeh, tradicional lenço árabe, virou o símbolo antiguerra da moda, e foi customizado pelas lojas. Ávidos consumidores e a grande maioria dos usuários não sabem o valor de representação da peça.

 

Na temporada de inverno de 2007, o estilista francês Nicolas Ghesquière, que está à frente da maison Balenciaga, apostou nas combinações multiculturais, inspirado pelas ruas de Londres. A grife usou em sua coleção, entre outros lenços, o keffiyeh, que era visto nas ruas da capital inglesa desde a Guerra do Golfo, como forma de protesto da população às invasões militares no mundo árabe.

 

Feito de algodão, o lenço tem como objetivo principal a proteção contra a poeira e a excessiva exposição solar. O pano é usado na cabeça pelos homens no Oriente Médio e ficou conhecido na década de 60 quando Yasser Arafat, ex-presidente da Organização pela Libertação da Palestina e ex-líder do Fatah, grupo extremista islâmico que governa a Cisjordânia, inspirava seus seguidores, que também usavam o lenço, transformando-o em símbolo do nacionalismo palestino. Ele tem um significado político, religioso e cultural árabe, é um símbolo do movimento pela libertação da Palestina e de louvor a Deus. A própria forma de utilizá-lo no Ocidente, no pescoço e em forma de triângulo, remete à bandeira da região.

 

Quando foi lançado no território norte-americano, uma polêmica fez a loja Urban Outfiters parar de vender as peças. Consumidores americanos com ascendência judaica alegavam que a venda dos lenços estimulava um movimento pró-Palestina e, para evitar maiores protestos, o item foi retirado de circulação e o site representante se desculpou por eventuais ofensas. O Brasil aderiu ao acessório e, sem reclamações, por falta ou não de conhecimento, o sucesso do lenço é notório.

 

– A moda brasileira usa um lenço adaptado, customizado. Dessa maneira, eu não me incomodo. Existem limites que devem ser respeitados. Não pode qualquer coisa virar moda e qualquer coisa poder ser usada. Se a moda é usar o lenço como um pedido de paz, deve ter a estrela de Davi junto, porque a paz é entre os árabes e os judeus. É um conjunto de coisas, pedir paz sendo contra o monopólio dos Estados Unidos, pelo fim da Al Qaeda e facções terroristas, todas juntas, aí sim é fazer um apelo de paz, defende a aluna Julia Schvartzer, que é judia e está no quarto período de Publicidade.

 

Além de adorno, o keffiyeh é um objeto de respeito a Deus, assim como os judeus usam a kipá (pequena cobertura na cabeça, usada durante a oração) e possuem o seu lenço. “Eu não gostaria que as pessoas usassem o meu lenço, que é uma demonstração de respeito aos judeus, no dia-a-dia, aleatoriamente, sem saber, porque ninguém sabe o que significa. As pessoas acham que isso daqui (o keffiyeh) é somente um pano palestino, mas ele é árabe, egípcio, jordaniano, saudita, sírio, libanês”, explica Julia.

 

A moda oriental

 

Outra peça que chama a atenção para o Oriente é a calça sarouel. Peça-chave para o próximo verão das brasileiras, a calça com o gancho baixo - como as do personagem Aladin, da Disney – é árabe, mas com grande contribuição americana. Por volta de 1850, a jornalista e feminista norte-americana Amélia Bloomer a propôs como vestimenta para praticar esportes e por isso é considerada a primeira mulher a usar calça comprida. Mas foi em 1894, com o uso de bicicletas, que as calças “bufantes” se popularizaram.

 

A maquiagem da próxima estação também será inspirada nas indianas. O delineador bem torneado e a sombra dourada ou com pigmentos dourados são a aposta para o verão. A profusão de cores nos tecidos orientais é refletida na boca. Batons foscos e coloridos substituem o uso do brilho labial. Os cabelos serão presos, emaranhados ou com tranças. Na escolha das cores, o tom sobre tom vai prevalecer, mas o laranja e o azul serão as opções mais cotadas. Flores, laços e fitas, como em todo verão, não vão faltar este ano. Chapéus de caçador, parecidos com o personagem do filme Indiana Jones, já estão nas lojas.

 

O clima de aventura e volta ao mundo reforça o uso das sandals boots – o sapato, inspirado nos gladiadores, junta a elegância da bota e a praticidade e conforto da sandália. No império romano, o calçado indicava classe social. Cônsules usavam sapatos brancos, senadores, sapatos castanhos de couro e os lutadores, escravos ou prisioneiros de guerra, andavam com sandálias altas, que em alguns chegavam ao joelho. As dobras nas barras das calças acrescentam o ideal de caça, luta e guerra, e expressam a questão histórico-cultural de cada nação.

 

Ciclo de tendências

           

O trabalho de imbuir a cor e o estilo escolhidos acontece no mínimo com dois anos de antecedência e é feito pelos escritórios de prospecção de tendências. É uma forma de fazer as pessoas se acostumarem com a moda, inconscientemente, pela arquitetura, exposição de artes e, principalmente, pelas ruas. O azul já aparecia em 2005, em pequenos detalhes nas roupas e acessórios, quando se iniciou um projeto de retorno ao estilo da década de 80, com a inspiração retrô e vintage na moda.

 

A excessiva produção industrial do azul Yves Klein, tonalidade inventada e registrada pelo pintor francês na década de 50 - o mesmo azul da caneta esferográfica Bic - vai induzir a confecção com a cor para se tornar a tonalidade da estação. A indústria têxtil trabalha em conjunto com os escritórios de tendência para vender a produção, contudo, caso o público não aprove a cor, a indústria apela para as confecções em massa ou espera mais alguns anos para acabar com o estoque.

 

Devido ao ciclo de tendências ocasionado pela volta de antigas produções, a aluna Luiza Melo, do 1º período de Design de Moda, não acredita numa rigidez de novos padrões. “Não acho que existam tendências, o lenço e a cintura alta, por exemplo, são um trabalho de pesquisa, uma inspiração. É tudo um retorno”, conclui Luiza. Retorno na história e retorno da indústria.

 

Tecidos para estudo

 

O Departamento de Artes e Design da Universidade estuda a proposta de montar a Teciteca, uma biblioteca de tecidos da Faculdade de Moda. Com provas de tecidos cedidos por indústrias têxteis, os estudantes poderão trabalhar na composição e padronagem dos panos. “É um projeto em fase de desenvolvimento”, diz Eliane Viana, responsável pelo Laboratório de Volume Têxtil da Universidade. Será a primeira etapa de produção das confecções. “A partir dos tecidos, os alunos buscarão a inspiração, a história”, diz Eliana.

 

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Experiência em terras israelitas

 

Julia Schvartzer segura o lenço árabe que ganhou de presente

Julia Schvartzer faz parte do Movimento Juvenil Judaico Hashomer Hatzair, no qual uma das etapas de desenvolvimento como monitora é viver um ano no Estado de Israel com o programa Shnat Harshará (ano de preparação em hebraico). Esse programa é laico, vinculado ao governo israelense. “Para mim, a religião judaica é mais uma religião de tradição do que de dogmas e preceitos a cumprir”, diz Julia. Agora administradora do Movimento, Julia realizou essa etapa em 2006, aos 18 anos.

 

Posteriormente às aulas com cursos de lideranças, dinâmicas de grupo, judaísmo, hebraico e inteligência emocional, a pessoa vive numa comuna – como uma socialista -, e depois num kibutz (sociedade agrícola). Na comuna, Julia trabalhou numa creche com crianças beduínas de 5 a 6 anos (esses beduínos são árabes nômades nascidos em Israel, que vivem no deserto. Em Israel existem sete grandes cidades beduínas reconhecidas pelo governo) no maior reduto reconhecido por Israel, Rachat. O programa explora o conceito da coexistência, árabes e judeus unidos pacificamente.

 

A interação entre eles foi tão grande que, entre muitos encontros, um árabe, irmão da monitora de Julia, se apaixonou por ela e quis negociar seu dote. “Um amigo meu que disse a ele que eu tinha namorado, aí ele me deu a keffiyeh para lembrar dele”.

 

– Existem exceções que convivem pacificamente, e eu faço parte dessa exceção. Eu luto para que um dia essas diferenças diminuam e a gente possa conviver em paz. É uma pena que o radicalismo islâmico ofusque essa realidade deles. Eles tocam música, são muito alegres, fascinantes. Eu pude vivenciar um lado muito bonito da cultura árabe, afirma Julia.

 

 

Edição 208

 

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