Quem passa pela Galeria Castelinho, na Rua Gomes Carneiro, em Copacabana, não faz ideia das milhares de histórias que moram ali, atrás de uma pequena porta de vidro quase escondida, à direita do corredor principal. Raridade em um mundo dominado pelas mídias digitais, a Storm Vídeo faz parte de um pequeno grupo de locadoras que se mantém em atividade, mesmo com o impacto da pandemia do novo coronavírus e o crescimento exponencial dos serviços de streaming. Mas quem conhece o lugar sabe que levar um filme para casa é só mais um detalhe.
A loja resiste há 28 anos nas mãos de José Carlos Menezes, dono do estabelecimento desde novembro de 1992, quando largou o emprego de analista de sistemas em uma firma de engenharia para assumir o negócio, aberto por seus irmãos em 1987. Depois da febre dos videocassetes, já na década de 90, e dos DVDs, no começo dos anos 2000, a chegada do streaming diminuiu a oferta e a demanda dos títulos e impulsionou o fechamento da grande maioria das locadoras.
Em um cenário tão desfavorável, a Storm Vídeo sobrevive graças a clientes como Ana Lucia Cardozo, 52 anos, que frequenta o local quase toda semana há mais de 26 primaveras. Ela diz que não se acostumou com os serviços de streaming e, apesar de ter a Netflix em casa, a troca estabelecida na locadora se tornou insubstituível.
- Hoje em dia ele é um amigo pessoal nosso, acompanhou toda a trajetória da minha vida, do meu marido, da minha família. Meus irmãos foram clientes dele, o irmão do meu marido também. Virou uma coisa bem familiar. Ele sabe das nossas preferências, do que nós gostamos. É um atendimento bem personalizado. Eu acho que a locadora se mantém por causa desse ambiente de acolhimento. Quando ele mudou o sistema de cadastro na loja, fizemos questão de ser o cliente número 1, até fizemos um bolinho para comemorar.
Entregador da locadora de janeiro de 2012 a fevereiro de 2013, Luiz Fernando Bento, 26 anos, guarda boas lembranças de seu primeiro emprego e acredita que o carisma do antigo chefe faz a diferença para a loja continuar aberta.
- Eu sempre admirei o Zé porque ele é muito simpático. Naquela época, a Netflix estava começando, então as pessoas estavam migrando de pegar filme na locadora para assistir em casa, no streaming. Mas ele conseguia manter os clientes fiéis pela simpatia, pelo atendimento diferenciado que fazia. Foi uma experiência muito rica. O Zé botava música, brincava. Era um serviço pesado, mas não deixava de ser divertido. Até hoje eu ouço algumas músicas e lembro daqueles tempos.
O movimento na loja caiu com a pandemia de Covid-19, mas a variedade de filmes disponíveis ainda é um chamariz para novos clientes. Vicente Valle, 18 anos, é ator e decidiu mergulhar no estudo de cinema e roteiro na quarentena e encontrou no acervo com mais de 25 mil filmes o lugar perfeito para concretizar seu desejo.
- Quando eu comecei a querer ver mais filmes, percebi que o catálogo Netflix, Amazon Prime e Now é muito limitado. Você vai para a década de 70 e não acha nada nessas plataformas. E eu nunca perguntei nada para o Zé que ele não tivesse.
Com uma clientela bastante diversa, a Storm Vídeo se consolidou como uma das únicas remanescentes no meio de aluguel de filmes. Ator e estudante de direção teatral na UFRJ, Samuel Valladares, 19 anos, gravou durante seis meses um documentário sobre a locadora, em 2017, ano em que Zé demitiu o último funcionário e passou a trabalhar sozinho. Valladares destaca que o ambiente acolhedor é a alma do negócio, e que alguns clientes vão lá só para bater papo com o dono.
- Eram conversas das mais variadas possíveis. Entrava um cliente e ele falava sobre política, depois sobre comida, filmes. Aí entrava outro, e o Zé sabia tudo sobre a vida daquele cliente. Me deu a sensação de que ali era mais do que uma locadora, era um espaço em que as pessoas se sentiam confortáveis para conversar sobre qualquer assunto.
De clientes que viraram namoradas a outras que insinuaram que ele tinha “aura de demônio”, com 59 anos, Zé passou por altos e baixos, engoliu diversos sapos, mas cultivou muitas amizades e histórias para contar.
- Foram 30 anos de muito aprendizado. Eu me sinto um felizardo, porque consigo trabalhar com cultura, falar de filmes, livros, CDs. E é um ambiente agradável para você conversar, né. Não é como ser dono de um açougue, que tem uma energia ruim. Mas não me sinto especial por ser uma das últimas locadoras, tenho plena ciência das minhas limitações. É mais fruto de um esforço pessoal e de necessidade, já que preciso trabalhar.
Representante de uma cultura quase extinta, a Storm Vídeo se mantém de pé há mais de três décadas e oferece algo muito além do simples aluguel de um filme. O professor Antonio Edmilson Martins, do Departamento de História da PUC-Rio, encabeçou ao lado da professora Heloisa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais, o projeto do museu virtual Rio Memórias, que busca resgatar a história e a identidade da cidade carioca. Ele destaca a importância da locadora não só como um espaço de descoberta e troca, mas também como de preservação da memória da cultura audiovisual de um Rio de Janeiro que não existe mais.
- Para poder manter a memória das locadoras constantemente em uso, ela tinha que circular. Acho que esse é o difícil hoje. Esse passado tinha que estar presente no sentido das pessoas estarem sempre em contato com isso. Às vezes tenho dificuldade de falar nas minhas aulas sobre as gírias dos anos 40, 50. As chanchadas, que eram as cenas do Rio de Janeiro, da cultura popular carioca. É difícil achar isso tudo. A memória não pode ficar guardada, porque se não fica empoeirada, e se perde. Se houvesse uma rede, isso seria mais fácil. Essa produção de presença é importante.