O tema se popularizou quando a advogada, ativista e ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Michele Obama, se definiu como uma impostora perante as suas conquistas, e outras mulheres se identificaram com as sensações descritas por ela. A síndrome do impostor é uma desordem psicológica que se caracteriza pela autossabotagem, quando a pessoa não consegue reconhecer o próprio potencial e se sente incapaz.
Recentemente, estudos de desenvolvimento de carreira, de psicologia e do movimento feminista começaram a abordar a pauta e defendem que o machismo afeta a autoestima das mulheres a ponto de desenvolver a crise. E, cada vez mais, a síndrome é abordada pelo movimento negro.
Para a mestranda em História Social na PUC-Rio, Denise Soares, 46 anos, a síndrome do impostor é o choque entre a forma como o negro se vê e o jeito como os brancos o enxergam. De acordo com ela, este é um tema de extrema relevância para a saúde mental desta parte da sociedade, por ser um sintoma de inferioridade que ao se desenvolver pode culminar em uma doença.
Por conta da relevância da pauta, Denise decidiu fazer o mestrado sobre alunos e alunas negros e pardos da PUC-Rio que se sentem como impostores no espaço universitário. Ela ressalta que apesar de todas as políticas de afirmação e inclusão, os ambientes universitários são em geral hostis para as minorias. Ainda no processo de pesquisa, a mestranda procura outros estudantes negros da instituição que tenham sintomas da síndrome.
- Pessoas brancas, pardas e negras precisam entender que estão sujeitas a sofrerem da síndrome do impostor. Para sofrer basta acreditar que seus méritos e conquistas são frutos do acaso e isso pode acontecer independentemente da raça e do gênero. Mas assim como muitos outros transtornos, a forma social intervém neste sintoma emocional e torna pessoas negras, mais especificamente mulheres, a serem vítimas de si mesmas – percebe.
Cor da pele e currículo
Denise tem uma relação intensa e de longa data com a PUC-Rio. Ela ingressou na Universidade aos 20 anos para cursar pedagogia por meio de uma ação afirmativa da época que buscava inserir no meio acadêmico alunos pobres e negros. Naquele momento, a pedagoga vivenciou um choque cultural e emocional, o qual acarretou sua autodescoberta.
- A PUC é a minha história. Em 1997, quando eu entrei pela primeira vez na Universidade, o choque cultural era tão forte que os alunos pagantes e brancos falaram que o nível ia cair. Eu só fui entender que o posicionamento deles era direcionado a mim quando eu reingressei na PUC em 2015 e só em 2018me descobri como negra – relata.
A moradora do Vidigal conta que não tinha conhecimento sobre pautas como o colorismo, hierarquia das cores e alienação colonial - para ela, negros eram apenas as pessoas de pele retinta. Mas tudo mudou quando uma das professoras de Denise disse em sala que existem pessoas negras com tonalidade pele mais clara e que “mulheres negras, pobres e faveladas”. Neste momento, ela afirma que tomou consciência de forma profunda da sua realidade.
- Ser reconhecida nesse espaço de poder como negra foi um parto doloroso. Não foi fácil, mas foi nesse momento que eu comecei a entender que a boa aparência está relacionada à pessoa branca e não à pessoa negra, e é por isso que há vinte anos eu não dou uma aula. Há vinte anos, eu mando currículo para escolas particulares e, há vinte anos, nunca fui chamada, minha cor da pele fala mais alto que o meu currículo - confessa.
Romantização do trabalho
Os traumas costumam motivar duas atitudes extremas: a procrastinação excessiva ou produtividade demasiada - apesar de distintas, estas duas ações são fruto da síndrome do impostor. Denise faz parte do grupo dos impostores que trabalham e estudam incansavelmente e, por mais focados, esforçados e preparados que estejam, eles atribuem qualquer o triunfo à sorte, mas hoje, lá no fundo, ela entende que não é dom, é habilidade e estudo.
- É difícil me convencer que não foi sorte, é difícil me convencer que foi trabalho duro. Mas cada dia que passa, vou me libertando e conseguindo me livrar um pouco mais desta autossabotagem que me cerca – conta.
Denise comenta sobre a romantização por trás da frase “trabalhe enquanto eles dormem”, ela considera esta filosofia como uma negligência à saúde física e mental. Para a mestranda, é preciso desconstruir a ideia de que o sucesso está intimamente relacionado ao sofrimento.
- Apesar de hoje conseguir controlar mais a síndrome, sempre me pego confundindo sacrifícios pontuais com carga de trabalho e estudo excessivos. Sinto que preciso produzir a qualquer custo para poder me equiparar minimamente a outras pessoas – afirma.
Racismo e desigualdade
O clube das impostoras é maior do que se imagina. Ex-aluna de história da PUC-Rio, Maria Alice Balbino, 27 anos, se deparou com situações acadêmicas que a fizeram duvidar de suas capacidades. Moradora da Rocinha, ela explica que ninguém, além de si mesma, contestava a legitimidade das suas conquistas. Ela é convicta de que a síndrome do impostor foi motivada pelo racismo e a desigualdade que, para ela, sempre estiveram enraizados na Universidade, seja nos pilotis ou na sala de aula.
- Por morar na Zona Sul, eu sempre tive um contato, apesar de distante, com pessoas de classe alta e suas roupas de marcas. No início, achava que a parte mais difícil seria enfrentar aquela espécie de desfile de moda que acontece nos pilotis e as panelinhas que inviabilizam as correntes sociais, mas o que mais engatilhou a minha síndrome foi subir as escadas e entrar na sala de aula e não ser mais a melhor aluna da sala – explica.
Maria Alice estudou em escolas públicas durante quase toda a vida, sempre foi uma aluna nota 10, inclusive ingressou na PUC porque foi aprovada pelo Banco Carioca de Bolsas de Estudo – um programa do governo que concede bolsas de estudos parciais e integrais em instituições de ensino superior privadas para alunos de baixa renda. Mas ao começar a universidade, ela se deparou com limitações impostas pelas diferenças culturais e educacionais entre ela e a maioria dos alunos. Após ter a autoestima intelectual abalada, ela passou a se calar durante as aulas e não se preparar para as provas, diminuindo ainda mais as possibilidades de se igualar academicamente com os outros alunos.
Procrastinação
A insegurança é o ingrediente perfeito para que alguém adoeça e se torne um impostor. Ela é motivada pela sensação de não estar pronto, de não ser capaz ou de se sentir uma fraude, tornando comuns comportamentos autos sabotadores. Diferente de Denise, que produz demais, a resposta de Maria Alice para enfrentar a crise foi procrastinar excessivamente.
- Eu sei, todos nós procrastinamos, é algo que faz parte da vida humana, mas eu procrastinava demais, me via como uma pessoa preguiçosa e não entregava as minhas tarefas. Por mais que eu quisesse, não conseguia escapar, estava estagnada. Passei quase a universidade inteira fazendo o mínimo – lembra.
O comportamento da historiadora diante dos afazeres só mudou no 7º período quando, com a ajuda do PISCOM, ela parou de se questionar se estava no lugar certo. De forma gradual, os laços com a síndrome do impostor foram deixados de lado, e ela começou a se sentir viva de novo, saudável ao ponto de ajudar pessoas que poderiam estar na mesma inércia que ela experimentou. Todo início de semestre, ela se apresentava e oferecia ajuda aos calouros de forma independente. O espaço que adoeceu Maria Alice foi o mesmo que a curou.
- A minha maneira de lidar com a síndrome do impostor foi abrir mais espaços para que eu pudesse compartilhar as minhas experiências na tentativa de ajudar os outros. A cada leva de calouros que entrava, lá estava eu pronta para sanar todas as dúvidas e questões que um dia não tive forças de descobrir as respostas. Pode parecer desafiador bater no peito e acreditar que você é merecedor, mas estar perto de pessoas e dentro de um lugar que te lembra disto a todo tempo pode facilitar a caminhada – acredita.