Joia da Zona Portuária
04/02/2022 12:56
João Jorge

Cais do Valongo é exemplo da conexão de memória, lugar público e identidade racial

Cais do Valongo (Foto: Matheus Aguiar)

Em 2017, o Cais do Valongo recebeu o título de Patrimônio Mundial da UNESCO. A homenagem reforçou a importância de uma área da Zona Portuária carioca, cuja história foi apagada constantemente desde o século XIX. A prefeitura assinou, em dezembro do ano passado, um decreto para a criação do Círculo do Valongo, cuja função será propor e acompanhar políticas públicas para a região.

Um estudioso da trajetória do Cais, o arquiteto e urbanista Luís Araújo explorou o tema durante a primeira mesa de debate do Seminário Lugares de Memória, organizado pelo Instituto de Estudos Avançados em Humanidades (IEAHu) da PUC-Rio no ano passado. Além de valorizar a interdisciplinaridade, o seminário aprofundou também a relação entre memória, lugar público e identidade racial. O Cais do Valongo, segundo Araújo, é um ótimo exemplo para analisar esta conexão e a tentativa de apagamento da identidade afro-brasileira.

- Existe um poder transformador entre a memória e os espaços onde a gente vive. Quanto maior for a tentativa de apagamento de determinadas memórias, mais complicado se torna a construção das identidades. A história do Cais do Valongo foi marcada por tentativas sistemáticas de apagamentos e silenciamentos de determinadas narrativas e expressões – afirma o arquiteto.

Araújo conta que a partir de 1771, a área do Cais funcionou a todo vapor no comércio de pessoas escravizadas. As tentativas de apagamento, segundo ele, teriam começado a partir de 1831, ano da proibição da importação de escravos para o Brasil. A primeira reestruturação ocorreu em 1842, quando as autoridades do Rio de Janeiro decidiram criar um novo cais por cima do Valongo para receber a Imperatriz Teresa Cristina. Estima-se que cerca de 1 milhão de escravos tenham passado pelo Cais do Valongo.

Cais do Valongo (Desenho de Augustus Earle / Gravura de Edward Finden)

Além do episódio do Cais da Imperatriz, outra reforma urbana alterou o espaço físico e simbólico da região: a reforma urbana realizada pelo prefeito Pereira Passos, de 1903 a 1906. Araújo destaca que, apesar dos apagamentos, a resistência do povo negro manteve viva a narrativa dos escravizados e de seus descendentes sobre o local.

- De forma paralela a todo esse movimento (de apagamento), sempre houve a presença pulsante da população negra na região que construía as próprias narrativas, caracterizando uma postura de insurgência e resistência que impediu o seu completo silenciamento.

A partir de junho de 2011, as obras do Porto Maravilha revelaram os vestígios históricos do Valongo, cuja trajetória ainda era desconhecida. Com os achados no local, começou um processo de ressignificação do espaço. Para Araújo, a valorização da cultura e da narrativa afro-brasileira foi a consequência mais relevante desta descoberta.

- Acredito que, para além de uma ressignificação da história, o que vem acontecendo desde 2011 demonstra o papel fundamental da valorização dos saberes e práticas da população negra como fontes de conhecimento e de compreensão do mundo, que automaticamente colocam esses agentes em um lugar de protagonismo. Tão importante quanto encontrar novas formas de contar a história é garantir um lugar central para quem está contando estas histórias há muito tempo, e precisa ser ouvido.

Moça vestida com trajes de origem africana no Cais do Valongo (Reprodução TV PUC-Rio)

A Reforma Urbana do Porto Maravilha também pode ser vista por outro ângulo. O professor Antônio Edmilson Martins, do Departamento de História, reforça que a descoberta do Cais foi muito importante. Ele ressalta, no entanto, que outros locais da Zona Portuária, tão relevantes quanto o Valongo, não foram valorizados.

- A Reforma do Porto Maravilha é parte da política neoliberal de intervenções urbanas e está relacionada às transformações na Zona Sul e na Barra da Tijuca. A descoberta do Cais do Valongo foi importante. No entanto, as outras descobertas, tão importantes quanto o Cais, foram devidamente enterradas, como o desenho do acesso aos trapiches na Rua Sacadura Cabral – diz Edmilson.

O professor afirma ainda que, diante da importância cultural e histórica, o espaço precisa ser prestigiado pelo poder público. Ele lembra que durante a Olimpíada Rio 2016 havia pouca sinalização ou placas indicando o local do Valongo.

- Mesmo o Cais, que virou Patrimônio da Humanidade, foi deixado de lado quando da identificação das paradas do VLT. A estação em frente ao Cais se chama Parada dos Navios e durante a Olímpiada Rio 2016 não havia nenhuma sinalização de que ali perto havia o cais.

Diante das questões que têm sido apontadas por diversos grupos, a Prefeitura do Rio decidiu criar o Círculo do Valongo para garantir monitoramento e proteção para a área da Zona Portuária. O projeto pretende promover fóruns de discussão e terá 24 representantes do poder público e da sociedade civil. A ideia é que três grupos – Círculo Consultor, Círculo Executivo e Círculo Protetor – sejam responsáveis por pensar e desenvolver projetos para a região.

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