Belezas naturais em uma metrópole de concreto
04/02/2022 20:24
Maria Clara Aucar

Livro conta a participação dos rios na história do Rio de Janeiro e na vida dos moradores 

Cascata Diamantina na drenagem do Rio Archer, próximo à Gruta Paulo e Virgínia, na Floresta da Tijuca (Parque Nacional da Tijuca). Foto: Marco Terranova / Rios do Rio, editora Andrea Jakobsson

O Rio de Janeiro tem muitas histórias que, apesar de relevantes, ainda são pouco conhecidas por seus habitantes. Uma delas é a dos rios cariocas, tema explorado no livro Rios no Rio, organizado pela editora Andrea Jakobsson, com participação dos professores da PUC-Rio André Trigueiro e Marcelo Motta, dos historiadores Bruno Capilé, Lise Sedrez e Lorelai Kury, do fotógrafo Marco Terranova e do engenheiro civil sanitarista Alexandre Pessoa Dias.

A ideia de fazer um registro sobre os rios da cidade, segundo Andrea Jakobsson, surgiu da percepção de que o ambiente urbano do Rio de Janeiro mistura “belezas naturais com uma grande metrópole de concreto”. De acordo com a editora, durante a produção do livro buscou-se reconstituir antigos cenários naturais da cidade, para que os leitores possam refletir sobre a forma como a paisagem e os serviços prestados pela natureza são usados.

- Os rios que vemos estão canalizados, os que não vemos estão enterrados. Velejando na Baía de Guanabara, várias vezes passei pela foz do Carioca e chamava atenção o odor fétido daquele rio que já foi famoso pelo aroma de flor de laranjeira. Da mesma forma, o triste Rio Comprido, eternamente à sombra do viaduto, e o Maracanã, antes de canalizados foram registrados em belas aquarelas do século XIX, que revelam uma natureza que não mais existe.

Doutor em História Social, Bruno Capilé diz que a participação dos rios na história do Rio de Janeiro tem relação direta com a existência social humana e a necessidade de água para consumo, produção de alimentos, higiene e, até mesmo, para o descarte. Para assegurar a dominação portuguesa no território brasileiro, a cidade foi usada, em um momento inicial, como um local de fortificação. Por isso, observa Capilé, a fundação do município ocorreu mais próxima ao litoral, em um local distante de rios – essenciais para a captação de água.

- Houve uma relação de exploração do trabalho humano para se ter acesso à água. Inicialmente, isto ocorreu com os povos indígenas que a vendiam, berrando “y” pela rua, que em tupi significa "água". Depois, a necessidade foi aumentando e este comércio não foi suficiente, então nós precisamos estar mais próximos das águas e dos desvios do rio Carioca para o centro urbano. Mas a cidade é maior do que o centro urbano. Se pensamos nos subúrbios e na zona rural, outras relações com a água sempre estiveram presentes.

Ele conta que alguns rios tiveram usos diferentes durante o mesmo recorte temporal. Na época do Império, por exemplo, os rios Maracanã e Carioca eram aproveitados de maneiras distintas. Na parte mais alta da cidade, os dois rios eram utilizados para a captação de água e estavam mais próximos às matas e cachoeiras, áreas que eram consideradas ambientes de saúde.

Um pouco mais abaixo, no médio curso, a água destas bacias históricas não tinha força gravitacional suficiente para ser distribuída, então foram utilizadas por muitos com a função de descarte. Como esta parte dos rios não podia ser aproveitada para o consumo, indústrias passaram a ser construídas nos locais durante o século XIX. Por fim, no baixo curso, o ecossistema de mangues, restingas e alagados formava um sedimento que, de acordo com o historiador, era vantajoso para a agricultura.

- Um exemplo é a plantação de cana-de-açúcar na freguesia do antigo Engenho Velho e na freguesia do Engenho Novo. Por conta das enchentes, estas áreas tinham o chamado solo aluvial, rico em nutrientes para a agricultura. Ao mesmo tempo, conforme a cidade foi crescendo, esta água parada, que estava poluída, esteve associada com as doenças. A saúde teve uma relação diferente com o rio no alto e no baixo curso. Diferentes aspectos da vida humana na cidade têm histórias diferentes no mesmo rio.

 

São Francisco Xavier do Engenho Velho, atual Grande Tijuca, por volta de 1866. Crédito: Georges Leuzinger / Acervo Instituto Moreira Salles

Neste momento, como explica Capilé, o subúrbio do Rio de Janeiro era um local escolhido pela população mais rica para se afastar do centro urbano, por motivos de saúde e pela ideia do higienismo social. Ali, antigas fazendas foram transformadas em chácaras, onde havia trabalho escravo.

A partir da década de 1820, o solo, antes explorado para a plantação de pequenas lavouras de subsistência e de jardins, passou a ser aproveitado para gerar renda. É o caso dos capinzais nas várzeas dos rios, que poderiam ser alugados para alguém que tivesse cavalos – usados como a principal força motriz para os meios de transporte da época. Além disto, havia, também, plantios de espécies aquáticas, como o agrião. Sobre o plantio desta hortaliça, Capilé revela que conseguiu saber detalhes a partir de um documento no qual moradores se queixavam da falta de fiscalização do crescimento da planta.

- Depois de um tempo, o agrião foi proibido em um espaço da cidade, porque, caso não seja manejado, cresce sem controle. E aí os sedimentos dos rios se depositavam nas raízes, até chegar uma chuva forte, que causava alagamento; sem escoamento por conta das valas obstruídas, havia reclamações de vizinhos. Não é que o historiador viva da desgraça, mas a desgraça do passado é uma fonte.

Safaris cariocas

Em conjunto com a doutora em História da América Latina, professora Lise Sedrez, Bruno Capilé escreveu no livro Rios no Rio um capítulo sobre as obras sanitárias realizadas na cidade até o final do século XX. De acordo com o historiador, a geração dos anos 1870 idealizava o crescimento tecnológico e científico e, por isto, a cidade começou a crescer com o surgimento de mais fábricas. A expansão, entretanto, não foi acompanhada de um planejamento, por conta da decadência do Império.

A partir de 1879, parte da cidade do Rio de Janeiro recebeu grandes investimentos públicos concentrados no centro urbano em crescimento. Como consequência, os rios próximos a este local também sofreram transformações, como o encanamento da parte urbana do rio Carioca. Com o passar do tempo, a modernização, implantada em um primeiro momento somente pelo centro urbano, passou para outras localidades.

Antigo Largo da Carioca, por volta de 1898, com o chafariz de 35 bicas ao fundo. Crédito: Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez / Acervo Instituto Moreira Salles

- Nós vamos ver, por exemplo, na baía de Manguinhos, na enseada de Inhaúma, a foz de três rios: o rio Jacaré, mais próximo de São Cristóvão e Benfica; o rio Faria, que desce pela Serra da Misericórdia e o rio Timbó, um pouco ao lado, que se junta com ele mais adiante. E os três saem na enseada de Inhaúma. Ao consultar um mapa hoje em dia, nós vemos que esta enseada ocupava parte dos bairros, e Inhaúma era um bairro marítimo, com acesso ao mar. O aterro foi feito pensando na utilidade do rio.

Capilé afirma que a história destes três rios foi bem diferente da trajetória das bacias do rio Carioca e Maracanã. A partir de 1890, houve no médio curso dos rios Jacaré, Faria e Timbó um processo de retilinização, isto é, tornar reta parte dos rios. No caso, isto serviu para facilitar o loteamento de antigas fazendas de cana-de-açúcar.

A zona de Manguinhos, cujo nome remete ao ecossistema de mangue que ocupava a região, sofreu diversas modificações no baixo curso, realizadas por proprietários de terra no século XIX. Depois disto, uma parcela dos moradores desmatou a região do alto curso destes rios. Nesta parte mais alta, ficava também a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que era acessada por meio de barcos. Ali, de acordo com o historiador, a população usava os rios com diferentes propósitos – para catar caranguejos, pescar e usar a lama para fins medicinais, por exemplo.

Pavilhão Mourisco da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), por volta de 1920. Crédito: Augusto Malta / Acervo Instituto Moreira Salles

Inicialmente, a região começou a ser aterrada para a criação de uma zona industrial, que daria continuidade às zonas de São Cristóvão e Benfica. Havia um projeto, que não foi concluído, de se formar o bairro industrial de Manguinhos, que aproveitaria os três rios como canais de escoamento. Além disto, a construção de casas no local e a falta de investimento público em saneamento e habitação fizeram com que os rios passassem a ter como função o despejo de esgoto. De acordo com relatos dos pesquisadores Lejeune de Oliveira e Luiza Krau, da Fiocruz, mencionados pelo historiador, a partir da década de 1930 não se via mais os rios sendo aproveitados como antes.

Na Zona Oeste do município, os rios eram usados principalmente para o turismo. Grande parte deles, que chegavam dos maciços da Tijuca e da Pedra Branca, desaguavam em lagoas como a de Caromim, que liga a lagoa da Tijuca à de Jacarepaguá

- Era como se estes espaços fossem os ‘safaris cariocas’; as pessoas passeavam para ver as belezas, andavam de barco, era uma aventura. Este viés aventureiro durou até, aproximadamente, a década de 1950. A partir de 1960, já começa uma expansão urbana, que Manguinhos viu nas décadas de 1910, 20 e 30. Jacarepaguá viu depois, porque é uma zona mais afastada do centro. Esta região era interessante para as construtoras e foi destinada para estabelecer moradias.

 

Modernização

O professor Marcelo Motta, do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da PUC-Rio, escreveu um capítulo no livro Rios do Rio, no qual aborda os projetos de urbanização iniciados na cidade a partir de 1970. Pesquisador na área de Geomorfologia, ele conta que com a mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília, na década anterior, o município deixou de ser foco dos investimentos e passou a viver um processo de inchaço urbano. Por causa da ocupação do agronegócio no campo e da expulsão de grandes contingentes rurais para os centros urbanos, o Rio de Janeiro foi um dos principais destinos destes migrantes, que encontraram uma cidade sem uma política de habitação para recebê-los. O resultado disto, segundo o professor, foi o fenômeno chamado de favelização.

- Nós temos, também, um péssimo saneamento básico na cidade toda, seja ela área de favela ou não. Nós vemos o esgoto sendo jogado nos rios, um crescimento urbano alucinado, sem política de habitação para as pessoas. A cidade vai explodindo, e os velhos subúrbios planejados vão sendo "inchados". E, obviamente, os rios serão o caminho preferencial do esgoto. Infelizmente, a estatística é que 100% dos rios que desembocam dentro do município está poluído. 

Apesar de a cidade ter um relevo particular, com três grandes maciços que recebem um grande volume de água das chuvas, os problemas que envolvem o abastecimento hídrico da cidade também não são recentes. Como afirmou o geógrafo, os maciços da Tijuca, no Parque Nacional da Tijuca, da Pedra Branca, no Parque Estadual da Pedra Branca, e o do Gericinó-Mendanha, no Parque Estadual do Mendanha, garantem a manutenção de água do município.

 

A Pedra da Gávea, localizada no Maciço da Tijuca, em 1906. Crédito: Augusto Malta/ Coleção Brascan Cem Anos no Brasil / Acervo Instituto Moreira Salles

Segundo Motta, a percepção de que as reservas florestais eram essenciais para a preservação da água ocorreu durante a época do Império de Dom Pedro I, após o primeiro Ciclo do Café. A produção de café no Rio de Janeiro começou pela Floresta da Tijuca, onde foram instaladas diversas fazendas, e a produção cafeicultora foi responsável pelo desmatamento das encostas do Maciço da Tijuca. Como consequência, os mananciais que abasteciam a cidade passaram a ter menos água disponível. Por isso, como explica o professor, iniciou-se um projeto de reflorestamento, comandado pelo Major Manoel Gomes Archer, e a Floresta da Tijuca passou a ser um polo de experimentos florestais e de plantio de espécies.

- A mesma coisa aconteceu com o Maciço da Pedra Branca, que foi afetado pelos ciclos da carvoaria e da agricultura. Depois, o parque da Pedra Branca deixou de ser uma área agrícola por conta do processo de urbanização. Quando um local é urbanizado, as áreas que não interessam para a urbanização acabam se tornando florestas, porque a atividade agrícola diminui. A agricultura derruba muito mais florestas do que a própria urbanização.

O maciço do Mendanha, por sua vez, também era uma área rural, que foi abandonada por não ter um solo fértil. Como afirma o geógrafo, os maciços ficaram sob florestas, enquanto o restante das baixadas foram transformadas em áreas urbanas.

Na década de 1920, o arquiteto francês Alfred Agache elaborou um plano de urbanização para o município que, de acordo com Motta, não foi executado exatamente como o planejado. O projeto, no entanto, serviu como base para a divisão da cidade entre áreas ricas, subúrbios para a instalação de fábricas e bairros proletários. Isto ocorreu, de acordo com o geógrafo, logo depois da reforma do prefeito Pereira Passos, que aterrou o manguezal do Maracanã e o Saco de São Diogo.

- A foz do rio Maracanã, do rio Comprido e do rio Joana desembocavam em um grande manguezal na área da Praça da Bandeira. A grande reforma de Pereira Passos vem desde a construção do canal do mangue, onde fica a rodoviária Leopoldina, e invade a Praça da Bandeira, aterrando todo este manguezal e acabando com ele. A cidade literalmente passa por cima do manguezal indo até a Zona Norte, onde os subúrbios se instalam. E aí é que vem uma questão primordial no Rio de Janeiro, que é o modelo de urbanização, associado à grande pavimentação e à canalização dos rios.

Canal do Mangue, por volta de 1930. Crédito: Fotógrafo não identificado/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles

De acordo com Motta, quando os rios são canalizados e as áreas de inundação naturais são pavimentadas, a água não consegue mais infiltrar no solo. A consequência disto são as enchentes nos bairros da cidade quando chove.

- Este é o quadro que encontramos no Rio de Janeiro: a Praça da Bandeira sempre inundando, a foz dos grandes rios com problemas de drenagem, e a cidade sendo alagada em suas baixadas. Nós podemos até pensar que, naquele tempo, talvez eles não soubessem disso.  O problema é que, se analisarmos a expansão urbana hoje, para a Zona Oeste, ela reproduz o mesmo modelo - ela tende a canalizar os rios e ocupar as planícies, construindo as "novas Praças da Bandeira" do futuro. 

 

Novo olhar para os rios

Para compor o livro, o fotógrafo Marco Terranova registrou em imagens o estado dos rios do Rio de Janeiro atualmente. Para ele, um dos desafios do projeto foi a necessidade de realizar o trabalho durante os primeiros meses de pandemia, quando ainda não havia muita informação sobre o novo coronavírus. Além disto, por conta da necessidade do isolamento social, o fotógrafo, que durante 30 dias passou por rios do Centro até Sepetiba, também precisou aprender a pilotar um drone sozinho.

De acordo com Terranova, o livro é composto de opostos. Por um lado, abrange as belezas naturais dos parques nacionais, como o Parque Estadual da Pedra Branca, o Parque Nacional da Tijuca e os Parques Municipais de Gericinó e Mendanha. De outro lado, o fotógrafo lamenta o fato de muitos canais da cidade, que poderiam ser limpos e ter peixes, estarem poluídos.

Foz do Rio das Almas, na Lagoa Feia e Praia de Grumari. Drenagem típica das áreas de Baixada arenosas no sopé dos maciços rochosos cariocas (neste caso, Serra de Guaratiba, Maciço Pedra Branca). Foto: Marco Terranova / Rios do Rio, editora Andrea Jakobsson

- Eu costumo dizer que, quando nós fotografamos, estamos criando um registro histórico daquilo. Quando você tem uma ilustração ou uma fotografia que mostre a realidade de um recorte histórico, isto é iconografia. A foto que eu fiz atualmente se tornará uma iconografia um dia. Daqui a 100 anos, se alguém quiser pesquisar o Rio de Janeiro, poderá saber como eram as montanhas e florestas, o quanto foi degradado, destruído. É muito bacana poder mostrar isso.

De acordo com Terranova, as fotos que não são tão agradáveis de se olhar têm a mesma importância de uma fotografia considerada bonita, porque representam um registro histórico de um local. Para ele, livros como Rios do Rio servem para incentivar o diálogo de temas como este e oferecem a oportunidade de especialistas compartilharem os conhecimentos na área.

Serra dos Pretos Forros, vertente norte do Maciço da Tijuca, onde nascem os principais formadores do Rio Faria e do Rio Jacaré. Foto: Marco Terranova / Rios do Rio, editora Andrea Jakobsson

O fotógrafo conta que, em todos os lugares pelos quais passou, foi muito bem recebido. Para ele, é importante lembrar que, por trás de uma imagem, existem muitos outros aspectos que permitem que ela seja registrada, como o respeito pelas pessoas que vivem nos locais explorados nas fotografias. Terranova também menciona que quando começou a prestar mais atenção nos rios, por conta do trabalho, o olhar para estes locais mudou completamente.

- No momento em que os rios foram o foco central, tudo o que eu tinha de visão teve que ser aprendido de novo. Não importa quanto tempo você tenha de trabalho, tudo é um desafio novo. Eu acho que esta possibilidade de ter um olhar direcionado para os rios talvez tenha sido o grande presente. Eu revisitei regiões que já conhecia muito bem, mas nunca tinha tido a oportunidade de fazer isto pelo ponto de vista dos rios e dos canais da cidade.

Mais Recentes
Os vários papéis da polícia no Mundo Atlântico
Encontros da História da PUC-Rio reuniram palestrantes da Itália, México e Brasil
O 'Solidarismo' e os tempos atuais
Obra de Pe. Ávila é relançada em seminário na PUC-Rio
Alunos terão desconto em moradia universitária
PUC-Rio fechou parceria com Uliving, maior rede deste tipo de serviço no país