Inspirado pela ação de ativistas e pensadores negros do século XX, o professor Antonio Sérgio Guimarães, do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), ministrou a Aula Inaugural do Departamento de Ciências Sociais. Durante a palestra, ele discutiu o significado, as reinvenções e a permanência do conceito de raça na sociedade brasileira. Guimarães ressaltou a importância de um dos mais importantes nomes da luta pela igualdade racial, Abdias do Nascimento, cuja carreira já havia começado bem antes do que ele mesmo se dera conta.
Era Carnaval, em meados da década de 1930. Um homem negro entra no cabaré Danúbio Azul para se divertir com o amigo. A música para. O pianista cruza os braços e afirma que, ali, negro não dançava. Aqueles dois homens não aceitaram tal comportamento - mas este foi só um instante de uma longa e contínua jornada. Na época, com menos de 20 anos e recém-alistado no Exército, Abdias do Nascimento se tornaria, futuramente, um dos maiores nomes do movimento negro no Brasil.
Filho de uma doceira e um sapateiro e neto de mulheres escravizadas, Nascimento atuou durante quase 80 anos como artista visual, poeta, dramaturgo, político e ativista. Ele participou da criação de projetos como o Teatro Experimental do Negro, o Museu de Arte Negra e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).
No livro Modernidades Negras, escrito por Guimarães, Abdias do Nascimento é um dos personagens que ilustram o cenário da formação da ideia de raça no Brasil. Segundo o professor da USP, na origem, a ideia de raça surgiu para tornar naturais características que são, na verdade, culturais. Para ele, este discurso sugere que a raça pode ser criada, marcada e identificada somente pela ancestralidade, como se traços psicológicos e comportamentais pudessem ser passados de forma hereditária.
Tais atributos, que justificariam uma superioridade social e a ocupação das posições de prestígio e poder, apontou Guimarães, determinariam a hierarquia racial. De acordo com professor, a partir da colonização, os marcadores físicos passaram a ser mais importantes para os europeus como forma de se distinguir dos demais povos.
- A classificação dos povos humanos pela cor da pele e outros traços fisionômicos generalizou-se e cristalizou-se. A cor, é bom lembrar, já era fundamental na simbologia religiosa europeia: o branco simbolizando a pureza e a virtude, por exemplo, e o negro, a perversão, a maldade, a morte.
Deste mesmo berço que nasceu o racismo, ele completou, surgiram também as Ciências Sociais. Na época pós-colonial, a independência das colônias nas Américas e o fim da escravidão naturalizaram as desigualdades herdadas por este sistema, ao mesmo tempo que ignoravam a questão da cor. Mas, apontou o sociólogo, o pensamento que influenciou a sociologia em sua origem, ao negar a noção de raça, abandonou também qualquer possibilidade de discutir preconceitos raciais. Aqui no Brasil, durante o início da atuação de Nascimento como ativista, um outro conceito corria pelo país que ameaçava a luta pela igualdade de raça: o mito da democracia racial, desenvolvida pelo pensador Gilberto Freyre nos anos 1930.
Nos anos 1940, os intelectuais negros já reintepretavam e entendiam a democracia racial como promoção da negritude e identidade social, ao invés de uma suposta igualdade. Guimarães, no entanto, afirmou que o pensamento de Nascimento só se tornou refinado no momento em que rompeu com a visão de Freyre.
Em Modernidades Negras, o professor traça um perfil das diferentes retóricas, pensamentos e ações políticas no Brasil, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1970. Além do mito da democracia racial, ele destaca questões como o preconceito de cor, a abolição e o abandono, e as cotas raciais. Estas particularidades dos discursos que se desenvolveram no país, para ele, ajudam a explicar a visão atual sobre raça.
- A democracia racial entre nós foi certamente um momento de resistência e de construção de uma modernidade negra brasileira, mas foi também uma ideologia oficial, transformada em arma diplomática, já totalmente abrasileirada para significar apenas igualdade política entre as raças. Mas a falta de penetração da democracia racial nas outras Américas é reveladora, o fracasso nos ajuda a perceber claramente a peculiaridade brasileira. Aqui, as raças nunca desapareceram dos discursos informais e dos projetos conflitantes de nação: no Norte, no Nordeste, no Sul. A democracia nunca incluiu plenamente os negros, os pobres e os indígenas.
Por isso, Guimarães observou que o processo de formação racial no Brasil engloba uma nova percepção cultural: vai desde o reconhecimento do papel da mestiçagem até a racialização de afrodescendentes, a ressignificação de termos racistas e a construção de um novo imaginário coletivo.