Pelo buraco da fechadura
25/04/2022 17:13
Giulia Matos

Maioria dos brasileiros acompanha programas de reality show como se eles fossem novelas da vida real, mas sem roteiro

Segundo o Dicionário Collins, “Reality Show” é um programa televisivo que mostra pessoas comuns ou celebridades em rotinas diárias ou em desafios específicos. Curiosamente, o Brasil, país com aproximadamente 214.3 milhões de habitantes, é um grande consumidor deste gênero de entretenimento audiovisual. Uma pesquisa realizada em fevereiro de 2022 pelo grupo Globo, por meio da Plataforma Gente, revelou que seis entre dez brasileiros consomem programas do gênero reality show. Deste público, 64% dos telespectadores seriam mulheres e 54% homens, das classes AB, 63%, e C, 57%.

Em 2015, o Instituto IPSOS MediaCt fez um levantamento na semana de estreia do reality show de maior audiência no país, o Big Brother Brasil, da Rede Globo, a fim de identificar o público alvo deste tipo de conteúdo. O estudo teve a participação de 53 mil pessoas e comprovou que as mulheres compunham a maioria do público espectador, o correspondente a 61%, enquanto os homens ocupavam somente 39% da audiência. A pesquisa também afirmava que a classe C era equivalente a 52% do público, enquanto 38% às classes AB.

Mestre em Jornalismo e Doutorando em Comunicação pela PUC-Rio, o jornalista Valmir Moratelli afirma que o interesse dos telespectadores por este gênero televisivo surge pelo emprego de recursos narrativos ficcionais comuns em novelas e filmes, conteúdos que o brasileiro costuma consumir. Ele menciona a atribuição de características positivas ou negativas aos participantes, mediante a análise do interlocutor do programa, e a dramatização do cotidiano.

- Os reality shows, principalmente os brasileiros, têm uma singularidade, uma autenticidade. Eles trazem um formato televisivo consolidado há bastante tempo na mídia popular, como as telenovelas, para dentro do programa. O fato de aproveitarem recursos de narrativas audiovisuais televisivas é o segredo da audiência expressiva. A edição sempre os utiliza para eleger qual dos participantes é o protagonista, o coadjuvante, o mocinho ou mocinha, e o vilão. Estes personagens existem em séries, em conteúdos fictícios que podem ser inspirados ou não na realidade, entretanto, nos realities há pessoas da vida real, que contracenam entre si, sem nenhum roteiro, no cotidiano.

Professor Valmir Moratelli / Arte: Diogo Maduell

Professor da ESPM, Moratelli ressalta que a procura por elencos diversificados, por integrantes de regiões distintas do país, de classes, personalidades é recente, mas ela se tornou fundamental para que o conteúdo exibido tenha recepção positiva pelo público. Segundo Moratelli, é interessante para o indivíduo se identificar com aquele personagem que está na televisão.

- Este produto se utiliza da questão da diversidade, que é buscada, cada vez mais, pela TV brasileira. As pessoas gostam de se reconhecer nas telas. Agora vemos elencos com pessoas gordas, jovens, mais velhas, desde um indivíduo do Maranhão, como do interior do Piauí ou do subúrbio carioca. São várias camadas que precisam estar representadas em um veículo que por muito tempo possuiu uma linguagem hegemônica, branca, elitista e carioca. Isto é quebrado aos poucos, mas acredito que o reality consiga exercê-lo.

O pesquisador em Comunicação enfatiza que não se pode afirmar que os reality shows representam a sociedade brasileira atual por inteiro. Cada região do país tem peculiaridades e pessoas com pensamentos e vidas distintas. Assim, não seria possível abranger todos estes campos, esta complexidade, em um programa que retrata o dia a dia de um número restrito de participantes.

- Acho que os realities não refletem totalmente a sociedade, principalmente a brasileira, que é muito plural. Lidar com esta diversidade por completo é algo que talvez nunca alcancemos. É por isso que a busca por representatividade aumenta cada vez mais e deve ser permanente. Eu diria que esses programas fazem eco a muitas coisas que acontecem no ambiente em que vivemos, desde questões de racismo, de homofobia, igualdade de gênero, ou até mesmo as “conversas de bar” que costumamos ter. Isso é refletido.

Ingrediente de novela

Professor de Antropologia na PUC-Rio, Bernardo Velloso Conde diz que um dos principais motivos para os brasileiros gostarem de programas de reality show é a questão da “pessoalidade”, de sentir que realmente conhece o outro, mesmo que seja em relação a uma figura pública.

- Somos um povo que aprecia relações autênticas, e a ideia de que aquele com quem vivemos ou falamos é verdadeiro, que se exponha emocionalmente. As pessoas não gostam da formalidade, da objetividade, do cuidado que, muitas vezes, alguns povos do Hemisfério Norte têm acerca da liberdade e privacidade. Acho que as novelas ajudaram nesta composição, pois ela traz uma dimensão em que acompanhamos cada ação e pensamento dos personagens presentes na narrativa. O reality show traz esse ingrediente da novela, da “pessoalidade”, e acrescenta uma noção de que aquilo que é exibido é real.

Professor Bernardo Conde / Arte: Diogo Maduell

O Coordenador e professor da Especialização Lato Sensu Cultura do Consumo PUC-Rio aponta a dimensão narcísica como outro fator que torna este gênero televisivo atraente para o público. Segundo Conde, o ser humano analisa o outro como forma de fazer uma auto-avaliação e autoconhecimento.

- Nós observamos o outro, no caso dos realities shows, os participantes, para descobrir as intimidades e como eles se comportam no cotidiano. É uma maneira de refletirmos sobre como nos portamos quanto à sociedade, o quão normal somos, o quão certo ou errado uma atitude ou pensamento pode ser e até o quão estranho aquele que não conhecemos é. Na dimensão narcísica, utilizamos tudo isso como espelho. Nos identificamos com integrantes do elenco do programa ou nos colocamos no lugar deles. 

A pesquisa feita pela Globo apontou que apesar de as pessoas acompanharem os programas de realidade e possuírem interesse no estilo, somente 29% dos entrevistados aceitariam participar de um programa com este formato. O professor de Antropologia comenta que aqueles que entrariam nestes projetos podem ser classificados como exibicionistas, e os que preferem não se expor e, sim, observar, como voyeurs.

-  A proposta do reality show é fazer o público sentir como se contemplasse uma situação por um buraco de fechadura. Quem está atrás da fechadura e observa é o voyeur, e quem vive o conflito e deseja ser olhado é o exibicionista. O participante sabe que há uma audiência e se entrega à experiência na intenção de se exibir, numa pretensão narcísica de que é muito interessante e tem um diferencial a ser mostrado para o público. As pessoas que são recatadas preferem não se expor tanto, mas gostam de comentar e analisar a intimidade alheia, apesar de saber que ela é controlada no momento no qual os participantes têm conhecimento de que são gravados, o que quebra a autenticidade.

Participantes do Big Brother Brasil 22 / Foto: Globo/Fábio Rocha

A estudante de psicologia da PUC-Rio Maria Clara Ribeiro gosta de reality show e revela que se sente pertencente àquele grupo que participa do programa ao observá-los no cotidiano. Ela diz que a identificação com os personagens depende da maneira em que eles enfrentam determinados acontecimentos.

- Eu vejo mais para passar o tempo, porém se torna viciante. Você se envolve com as situações e com o elenco. É como se vivesse com eles. Para mim, isto torna os reality shows mais atrativos, deixa os telespectadores ansiosos por mais um episódio. Eu nunca me reconheci em um participante específico, mas percebo reflexos com a forma que ele pode agir diante de uma situação inesperada. Acho que isto não passa pela cabeça das pessoas, pois elas preferem julgá-los do que se identificar com eles.

Vitória Perlingeiro é aluna de Arquitetura da UFRJ e costumava acompanhar programas de reality pela TV, mas com o tempo passou a observar o que era exibido pelas redes sociais. Ela acha que é acessível e funcional, porém chama atenção para as opiniões tendenciosas que os usuários ou páginas nas redes sociais podem ter quando publicam determinado fato.

- Ver o que acontece nesses programas pela internet é muito mais prático, pois há uma flexibilidade no horário. Porém é necessário um cuidado extra ao determinar por onde você vai obter estas informações. Há muitas contas em plataformas como o Twitter ou o Instagram que têm uma parcialidade ao descrever as discussões, diálogos ou qualquer coisa que tenha sido feita no programa. Elas podem favorecer um personagem e, implicitamente, tornar o outro vilão. Assim, você pode adquirir um ponto de vista restrito e totalmente parcial.

 

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