um fórum privilegiado para esse tipo de debate”
“Se eu não conseguisse entender a lógica da arte do meu tempo, enlouqueceria”. Assim se descreveu o poeta, ensaísta, cronista e professor Affonso Romano de Sant’Anna, que, no dia 3 de outubro, esteve na PUC-Rio para lançar o livro O enigma vazio – impasses da arte e da crítica. Ex-diretor do Departamento de Letras da Universidade, Affonso faz uma análise da crítica de arte contemporânea, que, segundo ele, muitas vezes cai na “hiperinterpretação” das obras e privilegia um discurso do endosso em detrimento de uma postura mais independente. Nesta entrevista, Affonso expõe ao leitor suas idéias a respeito da cultura contemporânea, na certeza de que “a arte pertence à comunidade”.
O que seu livro pretende apresentar de original?
Affonso Romano de Sant’anna – Dentro de uma leitura transdisciplinar da arte contemporânea, que já é um esforço raro, destaco especialmente os enfoques lingüístico, retórico e filosófico. Como explico no livro, a “arte conceitual” pode ser melhor estudada por esses ramos de conhecimento. Há que ver “o problema da linguagem e a linguagem do problema”. Como dizia Freud, começamos por ceder em relação às palavras e acabamos por ceder coisas concretas. Na verdade,estou desmontando algumas das falácias do discurso da modernidade e da pós-modernidade, porque já estou pra lá disto.
Alguns artistas não autorizaram a reprodução de obras deles em seu livro. Como o senhor analisa esse posicionamento?
Affonso – O Cy Twombly censurou a reprodução de seus trabalhos. Triste autoritarismo. O leitor pode acompanhar minha análise vendo o texto que o Barthes escreveu sobre ele e que está em seu livro O óbvio e o obtuso. Ou então pode olhar na internet, para onde remeto o leitor para conferir os trabalhos dele com o que estou dizendo. Já os representantes do Duchamp (Marcel) fizeram uma coisa meio cômica: queriam saber se eu ia falar “bem” ou “mal”, “contra” ou a “favor” desse artista icônico do século 20. Imagine, logo Duchamp, que zombou de todo mundo, que botou bigode na Mona Lisa e escreveu um palavrão debaixo de uma reprodução dela, que expôs seu sêmen como obra de arte, logo ele, que se intitulava “anartista” e decretou (leviana e erroneamente) o fim da arte, imagine, cara!, seus representantes querendo “controlar” o discurso alheio...
No seu blog, o senhor explicou que “este é um livro de análise dos impasses da arte e da crítica de arte na modernocontemporaneidade”. Que impasses são esses?
Affonso – Muitos. Destaco alguns. Há, primeiro, uma esquizofrenia, um divórcio, um buraco entre o público e certos artistas/obras de arte. E quando falo de público estou falando também de gente sofisticada: artistas, pensadores, escritores, teóricos, diplomatas, professores, jornalistas, etc. Veja o ridículo que é a atual “bienal do vazio”, cujo apelido, aliás, tiraram de uma crônica minha sobre o assunto, publicada em dezembro passado. Esse “vazio” tem que ser estudado. Depois há uma série de falácias de ordem teórica, que foram fixadas por Marcel Duchamp, sobre quem muito se fala, mas que é mal conhecido. Estou restituindo Duchamp a Duchamp a despeito de Duchamp e de seus falsos adeptos. Outra coisa que faço é pegar análises de pessoas notáveis com Octávio Paz, Jacques Derrida, Michel Foucault, Jean Clair, Roland Barthes, etc. e mostrar que pessoas notáveis cometem notáveis equívocos. Como provocação diria até uma frase que lembra um slogan criado por Alberto Dines sobre as leituras de jornal: você nunca mais verá a arte contemporânea do mesmo modo depois de ler este livro. Aliás, se um livro não servir para modificar as pessoas (a começar pelo próprio autor), não tem muita utilidade.
“Lamento informar à galera
que nem todo mundo é artista”
O senhor não se considera um crítico de arte, mas um analista de cultura. O que diferencia essas duas atividades?
Affonso – O crítico faz análises pontuais de obras e trabalha no mercado de arte produzindo apresentações, catálogos e, ultimamente, virou até curador. Isso é perigoso, pois passou-se a misturar dinheiro e negócio com critério estético e jogo de poder. Estou fazendo uma metacrítica – por isto, sempre me recuso a escrever catálogos, apresentar pintores. Se fizesse isto, entraria no “sistema” e os que estão no “sistema” estão amortecidos por uma série de razões. Dentro do livro, trabalho inclusive a imagem do “forasteiro”, do “estranho”, daquele que fora da “corte” é capaz de dizer que o rei está nu. Veja o pessoal que organizou essa “bienal do vazio”: continuam dizendo que um sujeito dentro da bienal fazendo cópias de chaves que lhe dão é artista, que uma pessoa escorregando num tobogã é uma obra de arte. E o pior sobre essas “in-significâncias” é que são capazes de fazer longos e complexos discursos, que não resistem a uma análise séria e competente. Como diria Beckett: ”É preciso que o discurso se faça, então inventamos obscuridades”. Mas como a gente vê naquele conto de Poe, A carta roubada, estudado por Lacan e que analiso no meu livro: o que tanto procuramos pode estar gritantemente aos nossos olhos, e não queremos ver. Por isto, aliás, estudo as questões do ver-desver-rever.
No nosso tempo, há uma certa crença de que tudo é arte e de que todos são artistas. Que prejuízos essa percepção causa para o mundo da arte e dos artistas verdadeiros?
Affonso – Pois é. Lamento informar à galera que nem todo mundo é artista. Há artistas bons, artistas ruins, artistas medíocres, quase-artistas e gente que não é artista. Da mesma maneira, outra tolice propagada por Duchamp é essa de que todo mundo é artista, que todo mundo que “age” é artista. Quer dizer, qualquer chofer na direção de um caminhão, qualquer caixa de banco contando dinheiro, enfim... Isto criou um ”facilitário”, só beneficiou os incompetentes e carreiristas. Arte é algo especial e raro. Leonardo da Vinci não é capim que nasce em qualquer pasto. Bach e Mozart são figuras singulares. Querer negar a “singularidade” do artista e do objeto artístico é apenas uma afirmativa ideológica de época, de uma época de simulacros, do fake, da cópia, do pastiche, da aparência, da pressa, do marketing, da improvisação. Enfim, tento fazer uma análise também da episteme da modernocontemporaneidade e sugerir saídas para essa aporia.
Na PUC, o senhor afirmou que, de tão viciado, o sistema artístico só poderá se modificar por meio de uma leitura interdisciplinar. Que contribuição áreas tão distintas como marketing, filosofia e psicanálise podem oferecer ao entendimento da arte do nosso tempo?
Affonso – Quando um doente está muito mal e um médico não sabe o que fazer, convoca uma junta médica. A arte contemporânea é um doente terminal. Fora do Brasil, algumas coisas têm aparecido, e as menciono neste e no livro anterior, Desconstruir Duchamp, buscando soluções para o impasse criado há cerca de cem anos. Aqui, inclusive, a visão oficial da arte contemporânea é um subúrbio do pensamento americano e inglês. Algumas editoras estão com 50 anos de atraso editando Arthur Danto, Rosemberg, Greenberg e outros, como o alemão Hans Belting. Não é daí que vem a renovação. Indico várias coisas no meu livro e abro um caminho novo: os enfoques lingüístico, retórico e a análise do discurso, além de somar o que outras disciplinas (até a física) podem nos dar.
Edição 210