Jornal da PUC - Em Carnavais, malandros e heróis, o senhor faz uma análise da sociedade brasileira a partir de seu cotidiano, e deixa um pouco de lado os aspectos históricos. Os rituais presentes na cultura brasileira são explorados pelo senhor, como o carnaval e as procissões religiosas, para explicar o dilema brasileiro. Quais são esses dilemas e como os estudos desses rituais ajudam a explicá-los?
Roberto DaMatta - Deixei de lado a dimensão histórica porque queria experimentar, chegar até onde o exame antropológico, motivado pelo estruturalismo e pelas teorias do ritual, me deixaria ir. Ademais, pode-se, penso, argumentar que o carnaval, como todo ritual, tem como objetivo isolar e neutralizar o tempo, diminuindo seus efeitos e criando zonas de eternidade, como digo no livro. Quanto ao dilema, trata-se do seguinte: como se pode ter um sistema que se desconjunta simbolicamente, pelo ritual carnavalesco, todo ano? Seria isso uma consequência do fato de que somos uma sociedade muito ciosa de sua ordem hierárquica e, por isso, ela a inverte ou subverte pelo riso e pelas fantasias todo o ano? Com o simples propósito de fazê-las mais fortes e toleráveis? Esse é o dilema: o de um ritual orgástico numa sociedade autoritária.
Jornal da PUC - No livro, o senhor argumenta que no Brasil há dois sistemas opostos. Um sistema ocidental, que é moderno e tem um Estado organizado em função do indivíduo (sociedade), e outro tradicional, em que o indivíduo não tem importância, já que o que vale é o coletivo. Para o senhor, por que a existência destes dois modelos, no Brasil, é prejudicial à eficácia das leis?
Roberto DaMatta - Porque o sistema moderno é baseado em leis universais que valem para todos e o outro, que no Brasil se manifesta na casa, no grupo de amigos e também nos partidos políticos, tem éticas ou normas particularistas que dizem: não serve. Você sabe com quem está falando? Não sou uma pessoa comum, sou um medalhão, como já mostrava o velho Machado de Assis.
Jornal da PUC - O senhor também apresenta, em seu livro, os Estados Unidos como um país dotado de direitos civis, onde há garantia das liberdades individuais e da democracia, sendo, portanto, a sociedade organizada em função do indivíduo. Outro país utilizado para exemplificar a dualidade do sistema político brasileiro é a Índia, que classifica como pólo tradicional, onde a sociedade se sobrepõe ao indivíduo. Em 1979, o regime político vigente no país era a ditadura. Para o senhor, a dualidade da época continua nos dias de hoje?
Roberto DaMatta - Continua. Um dos problemas que o livro levanta é como estudar sociologicamente a modernização de sistemas periféricos como o Brasil. O que eu mostrei foi que as sociedades tradicionais e tribais são muito diversas do modelo ocidentalizado, moderno e tido como canônico: o modelo da sociedade feita de indivíduos-cidadãos, ordenada por leis que submetem a todos com igual intensidade e justiça. Na época, eu penso que tínhamos mais fé na pureza desse sistema do que hoje. A globalização nos fez ver que o hibridismo, a combinação complexa de igualdade, individualismo e hierarquia e holismo, tem muitos jogos e variações. Hoje vemos o sistema pender mais para a igualdade do que para a hierarquia, mas ela volta e meia aparece no jogo e no mundo da política.
Jornal da PUC - No livro há a comparação entre o carnaval, a parada de 7 de setembro e as procissões religiosas. O primeiro é colocado como inversão dos papéis sociais, sendo o momento em que as pessoas podem fingir serem o que não são. E a parada da independência é colocada como algo ritualístico, em que o povo deixa de ser agente e torna-se passivo e observador daquele acontecimento, obedecendo à hierarquia. Já a procissão religiosa é definida como o momento de encontro de uma massa heterogênea, transformando a imagem do santo em uma figura carnavalesca. Hoje, ainda é forte este tipo de comportamento? Houve alguma mudança de comportamento do brasileiro em relação a esses eventos? Como o senhor avalia o Brasil de hoje?
Roberto DaMatta - Acho que isso continua em linhas gerais. Somos um país que continua acreditando em Deus e sendo moderno; que tem fé na Umbanda e na Igreja, que juntou Nosso Senhor do Bonfim com divindades africanas. Por outro lado, queremos também ser igualitários, ricos e modernos. Os ritos cívicos do mundo ocidental, como a Proclamação da República e a festa da Independência, são festejados tanto quanto o carnaval que foca no sexo, no riso e na desordem. Eu ainda penso que essa vontade de ser tudo é uma coisa brasileira muito curiosa e muito bonita. Foi o que tentei mostrar neste livro.
Edição 214