O II Colóquio Internacional de Filosofia da Tecnologia, realizado de 20 a 22 de março, na PUC-Rio, convidou 45 professores e especialistas de diversas áreas para um debate sobre “A tecnologia e os limites da linguagem”. O encontro foi aberto pela professora e Vice-Reitora Acadêmica da PUC-Rio, Marley Vellasco.
— Fico muito contente que a PUC-Rio esteja realizando o colóquio. A Universidade é pioneira na análise e na discussão sobre o conjunto de tecnologia e humanidades, que tem como objetivo entender os impactos da automação. Hoje se fala muito da inteligência artificial no mundo inteiro, mas também devemos estar atentos aos problemas deste avanço porque podem interferir na geração de empregos e prejudicar a base de dados. A temática envolvendo vários professores é muito importante para a Universidade – destacou a Vice-Reitora.
Em uma das rodas de conversa, mediada pelo professor de Informática Hermann Haeusler, o professor Virgílio Almeida trouxe o tema “Busca de novos conhecimentos e colaboração entre as áreas da ciência". Para ele, os desafios do país em questão de disciplinaridade é grande, e a expansão do conhecimento deve acontecer por várias razões. Uma delas é a interface entre a computação, ciências sociais e filosofia, que resulta em aumentar a eficiência das tomadas de decisões.
— Atualmente, estamos vivendo transações habilitadas pela tecnologia, com isso, as relações sociais, humanas e políticas têm sido afetadas. O foco da computação é buscar eficácia técnica. Por exemplo, a eficiência dos algoritmos que não são agentes completamente autônomos. Pelo contrário, são artefatos moldados em contextos que incorporam regras para influenciar o comportamento humano ou comportamento coletivo, com impactos sociais e políticos.
A tecnologia e os limites da linguagem
O Colóquio contou com a participação da especialista em linguística computacional, Clarisse Sieckenius,que levantou o ponto de vista centrado na produção de conhecimento científico. Ela se inspirou nos estudos do professor Franco Moretti, da Universidade de Stanford.
Há alguns anos, Moretti identificava novas práticas e conceitos de leitura: de perto, de longe e terceirizada. Os livros são os meios de leitura próxima. Os objetos virtuais podem ser vistos como leitura a distância e a leitura terceirizada é constituída por plataformas de interpretação de textos como, por exemplo, o chat GPT.
A problemática da crescente desenvoltura tecnológica é que ela acaba sendo uma disciplina invisível nos espaços de aprendizagem, alterando de forma drástica as várias formas de ler. A professora Clarisse afirmou que as múltiplas formas de leitura não substituem outras.
— Hoje, toda a comunicação está permeada por inteligência artificial, constituída por diversas interfaces. O que me preocupa é que a tecnologia nos treina em uma comunicação de uma forma específica, montada para ser sucinta e objetiva. Acredito que as pessoas possam se acostumar a um tipo de discurso mais rápido do que deveria ser menos refletido. Nós perdemos algumas habilidades linguísticas. Esse treinamento ao qual nós estamos sujeitos é um exercício que precisa de um olhar mais crítico do que ele tem merecido.
Educação Pública e Tecnologia
No Colóquio, a professora Ana Nogueira, formada em História e com experiência nas redes públicas de ensino brasileira e norte-americana, ela mediou um debate com os professores Antonio Alfredo Rodrigues e Lucio Massafferri. O tema era a relação de desigualdade existente no ensino público e como a tecnologia pode ser inserida neste contexto para auxiliar o desenvolvimento dos alunos.
Com a implementação de uma oficina de drones no Núcleo de Cultura Digital do CIEP Ayrton Senna, que atende principalmente alunos da Rocinha, o professor de geografia Antonio Alfredo Rodrigues buscou utilizar a tecnologia como ferramenta pedagógica. O objetivo da atividade era investigar a maneira com que os estudantes se relacionam com o meio digital a partir de uma sala multimídia.
Com a iniciativa, o professor utilizou de campos tecnológicos para ensinar os alunos a realizar um “sensoriamento” remoto da escola, obtendo imagens aéreas do local a partir dos drones. Por meio do material obtido, foi possível fazer uma vistoria do prédio, e assim, melhorias poderiam ser feitas na estrutura.
– É muito legal esse diálogo entre a academia e nós, professores, que estamos nas salas de aula de escolas. Professores que precisam dar aula sem nenhum recurso, como ar-condicionado, tentando fazer com que a relação ensino-aprendizado aconteça. Nessa atividade com o Google Earth, também tivemos alunos com necessidades especiais participando. Estamos tentando captar uma quantidade maior de estudantes – explicou Antonio Alfredo.
"Como fazer um letramento digital com estudantes que precisam de letramento formal?" Para o professor, a pandemia teve papel fundamental no desinteresse dos estudantes pela educação, principalmente para aqueles que não tinham nem acesso a dispositivos para se conectar com os professores, o que ampliou a desigualdade.
Na didática do professor Lucio Massafferri, que trabalha na Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, ele procurou utilizar o universo cinematográfico como estratégia pedagógica para incentivar o interesse dos alunos em sala.
– Em vez de utilizar Platão diretamente, coloquei um episódio da série Black Mirror para ilustrar a teoria que queria ensinar. Depois de os alunos assistirem, começamos um debate em sala de aula sobre aquela mídia e, a partir disso, introduzi a matéria de Filosofia. Fiz isso porque os jovens já nasceram tão conectados que isso se torna uma questão durante as aulas.
Tecnologia, comunicação e linguagem
Para discutir a influência da tecnologia na comunicação, a professora de Informática Ingrid Monteiro mediou uma conversa com os professores Marcelo Alves, do Departamento de Comunicação, Remo Mannarino, do Departamento de Filosofia, e Maurício Fernandes, professor da pós-graduação do curso de Filosofia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Marcelo falou sobre o problema da desinformação a partir de uma lógica “sociomaterial”, que é o estudo sobre a interação de seres humanos e não humanos e a impossibilidade de separar o material do social. Para ele, é preciso entender quais as modificações na web que influenciam o problema da desinformação dentro de três vertentes: financiamento, legitimação e enganação.
– Quando penso no problema da desinformação, é preciso analisá-lo dentro do ambiente midiático, que é atravessado por uma série de configurações não-humanas muito fortes. Entre as possibilidades, existe a questão financeira, porque a desinformação traz a seus autores muito dinheiro. Como exemplo, existe um canal do YouTube detectado dentro dos processos do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a desinformação, que teve uma estimativa de ganho anual em R$ 2,5 milhões via programa de parceria com a plataforma do YouTube.
O professor de Filosofia Mauricio Fernandes revelou que antes da ciência e técnica veio a linguagem. Atualmente, a linguagem, a tecnologia e a natureza humana estão passando por um processo de desumanização. De acordo com ele, por meio dessa junção entre tecnologia e linguagem, nós nos tornamos o que somos hoje, e assim, vivemos uma crise antropológica na qual esses dois elementos se encontram implicados novamente.
As consequências da aceleração disruptiva
“A computação veio para ficar” Foi com essa frase que Lucia Santaella, professora titular no programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica, deu início à palestra com o tema “Do analógico ao digital”, no dia 21 de março, na PUC-Rio. Outros professores especialistas da área participaram da mesa que discutiu a passagem do mundo analógico ao mundo digital, os impactos da tecnologia sob as diversas perspectivas do mundo e de que maneira isso tudo afeta a sociedade.
A digitalização democratizou o acesso à rede, o que permitiu uma pesquisa completa em apenas um clique. Impulsionado pela facilidade e rapidez proporcionadas pelo ambiente digital, esse avanço tecnológico trouxe uma quantidade impressionante de informação. Os palestrantes fizeram comparação das perdas e ganhos devido à tecnologia moderna, enquanto no analógico existe uma humanização, no digital há uma robotização. O analógico tudo expira e tem prazo de validade, no digital a durabilidade é maior.
A era digital começou nos anos 50, pós Segunda Guerra, com o surgimento do computador. Nos anos 90, teve início a imersão digital. E desde então há uma aceleração disruptiva da digitalização. No momento, o mundo entrou na era dos dados, a dataficação. Qualquer informação armazenada no computador se transforma em dados. Pode ser considerada como a segunda idade da internet.
A aceleração é tema nas discussões antropogênicas no contexto da geologia, das mudanças climáticas e da crise hidrológica dos leitos dos rios. As consequências digitais já estão visíveis, como a perda de biodiversidade, o desaparecimento das florestas tropicais, o ritmo de extinção das espécies de animais, que está de 100 a 1000 vezes mais rápido por conta do avanço tecnológico. “Estamos exponencialmente consumindo mais recursos que a natureza nos oferece”, disse a professora Lúcia Santaella.
Outro efeito negativo da digitalização na sociedade são as deep fakes. Elas podem ter grande impacto nas eleições que se aproximam de vários lugares do mundo, incluindo o Brasil.
Desafio da Educação no Século XXI
O professor da Universidade de Évora Ângelo Milhano explicou as implicações da inteligência artificial na educação e na vida humana. O pensador interpretou conceitos filosóficos que podem ser amplificados nos dilemas tecnológicos contemporâneos. Para ele, há riscos existenciais que se prefiguram o uso da inteligência artificial na sociedade humana, na cultura e nos contextos educativos.
Ângelo Milhano destacou que as tecnologias são inicialmente consideradas incorporadas, mas, com o passar do tempo, podem perigosamente se tornar transparentes. Nesse sentido, ele define o uso de tecnologia como uma ferramenta de transmissão de significados eficiente:
-- O desenvolvimento tecnológico apresenta-se como um reflexo do modo como nos relacionamos naturalmente com o mundo, replicando formas cada vez mais eficientes a nossa capacidade de criar e transmitir significados. A razão de ser de qualquer artefato tecnológico é a sua capacidade de potenciar ou melhorar algum aspecto da nossa existência, sem impor restrições que nos causam grandes transtornos.
A pesquisadora e educadora especializada em software de código aberto, infraestrutura digital e abordagens críticas para novas tecnologias, Erin Glass, levantou questões acerca dos desafios do controle das ferramentas digitais e como o sistema de educação deve agir para incentivar o saber dessas questões. Erin destacou que a infraestrutura dos sistemas de informações, o uso de inteligência artificial e a prática de computação opressiva devem ser relevantes e cativantes para o público.
Para a pesquisadora, a colaboração interdisciplinar é crucial para abordar os problemas em torno da infraestrutura de informações e sistemas computacionais. É preciso incentivar os usuários a se interessarem pelo desenvolvimento das ferramentas. A crítica destaca a necessidade de reavaliação das práticas de computação dentro da academia e além.
Erin defende que as escolas além de simplesmente ensinar como usar ferramentas, devem promover o pensamento crítico, o raciocínio ético e as habilidades de alfabetização digital. Para ela, fornecer aos alunos uma compreensão mais profunda dos sistemas sociotécnicos que habitam pode capacitá-los a navegar e moldar seus ambientes digitais de forma mais eficaz.
– Existe uma visão abrangente da complexa relação entre inteligência artificial, práticas de computação opressivas e a busca pela sabedoria. Fica claro que, embora a IA ofereça inúmeros benefícios e oportunidades, ela também apresenta desafios significativos, especialmente em relação à privacidade de dados, viés e ao reforço das estruturas de poder existentes.
A discussão sobre a sabedoria destaca a importância da inteligência orientada pela virtude, com um compromisso de examinar as implicações éticas e consequências de nossas ações. No contexto da IA e da computação, isso significa avaliar criticamente como essas tecnologias são desenvolvidas, implementadas e utilizadas.