Tá Pirando, Pirado, Pirou
03/07/2009 15:00
Aline Veloso e Sarah Lemos / Ilustração: Diogo Maduell

O Jornal da PUC passou um dia no hospital psiquiátrico Philippe Pinel. No Instituto Franco Basaglia, uma organização não-governamental localizada no Pinel, conversamos com assistentas sociais, advogados, psicólogos e pacientes que lutam para a inclusão social dos deficientes mentais na sociedade.

Ex-paciente do hospital psiquiátrico Philippe Pinel, Luis Cláudio dos Santos, 47 anos, teve sua primeira crise aos 18. Desde que virou mestre-sala do bloco de carnaval Tá Pirando, Pirado, Pirou, há cinco anos, nunca mais foi internado. Assim como Luis Cláudio, o direito de todos brasileiros com deficiência mental era restrito apenas a receber ajuda psiquiátrica. Em 2008, esse panorama mudou e eles conquistaram o direito de trabalhar e viver como qualquer cidadão. No dia 9 de julho, a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (física ou mental) foi ratificada pelo então presidente do Senado Federal, Garibaldi Alves.

 

O documento é o primeiro tratado internacional de nível constitucional da história do país. Dessa forma, o Estado deve promover o bem-estar físico, mental e social destes cidadãos. A mudança de paradigma nas atitudes em relação aos portadores de deficiência na legislação de direitos humanos mundial beneficia mais de 650 milhões de pessoas. Pensando nisso, o Instituto Franco Basaglia (IFB) prestava assessoria jurídica aos doentes e seus familiares, através do SOS Direitos do Paciente Psiquiátrico. Localizada no Pinel, a organização não-governamental teve o programa cancelado, exatamente no final do ano passado, por falta de verba.

 

Fundado em 1989, o IFB luta por uma reforma psiquiátrica cada vez maior, para rever a forma de tratamento dos pacientes e buscar uma maior aceitação e inclusão da “loucura” na sociedade. O Brasil já possui a lei de Saúde Mental, que mudou o modelo de tratamento hospitalar para unidades de serviços comunitários e abertos. Mas só a Convenção da ONU apresentou as pessoas portadoras de deficiências como cidadãos. Os artigos conferem reconhecimento universal a 14,5% da população brasileira: são aproximadamente 25 milhões de pessoas com algum tipo de limitação funcional no país.

 

De acordo com Juliana Morená, psicóloga que era responsável pelo programa SOS, o trabalho do IFB era um investimento, não um assistencialismo. “O objetivo era que esse conhecimento fosse apenas um desencadeador social, um dispositivo para buscarem oportunidades lá fora”, afirmou. O envolvimento dela com a ONG era tão grande que, em 2000, quando começou, virou até porta-bandeira do bloco de carnaval, parceira de Luis Cláudio. A iniciativa é uma forma de ocupação mental muito favorável. Segundo Fernando Tenório, professor de Abordagem Psiquiátrica dos Quadros Clínicos da PUC-Rio, qualquer atividade é bem-vinda. “De modo geral, quando eles encontram condições acolhedoras – sem muito estresse e pressão -, o resultado é muito positivo”, afirma Fernando.

 

Condição afirmada por Luis Cláudio, que espera o ano todo para desfilar. “Não posso surtar para ficar bem para o carnaval. Por isso eu gosto do bloco, já que eu tenho que cuidar da minha saúde e assim não dá tempo de eu ficar mal”, garante Luis Cláudio, que também colabora com as atividades do IFB. Para estimulá-los, o Instituto contrata alguns pacientes como demonstração da capacidade produtiva deles.

 

A paciente Esther Arotchas é outro exemplo. A auxiliar administrativa da IFB começou a trabalhar na ONG em 1996. Ela descobriu o serviço do Franco Basaglia nas visitas ao Pinel. Para ela, o maior benefício que recebe é a amizade. “Somos um grupo grande, no qual todos se ajudam. Adoro as pessoas daqui, elas são especiais”, diz. Perguntada se existem níveis de doença mental, Esther foi categórica: “Sim, assim como existem diversos tipos de pessoas.” Segundo ela, todos têm problemas, sendo saudáveis ou não. E Luis Cláudio completou a afirmação: “Lá fora, às vezes, tem gente muito mais louca do que aqui dentro”.

 

Tratamento Psiquiátrico

 

A dificuldade no tratamento das doenças mentais é o diagnóstico de uma patologia certa. A “loucura” não é uma doença caracterizada, é um transtorno e por isso não envolve simplesmente um processo de diagnóstico e de cura. Os pacientes do Pinel não recebem tratamento de internação, salvo em casos graves. Ele estimula a liberdade e livre circulação dos portadores de doenças mentais, aumentando a sua relação em sociedade e aplicando um novo modelo de tratamento psiquiátrico.

 

Este modelo, que respeita os direitos humanos e que assegura a liberdade de ir e vir, é a proposta da luta antimanicomial, que teve início em 1987. A Carta da ONU Proteção das Pessoas Portadoras de Transtorno Mental e Desenvolvimento da Assistência à Saúde Mental, de 1991, reforçou os princípios que orientam a reforma. Apenas dez anos depois, no dia 6 de abril de 2001, o Brasil outorgou a lei nº 10.216, Lei de Saúde Mental brasileira.

 

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) se tornaram uma alternativa aos manicômios, com atendimento psicológico, psiquiátrico, enfermaria, assistência social e terapia ocupacional. Além de oferecer oficinas, visitas domiciliares e atividades de orientação para proporcionar a inclusão das famílias nas atividades comunitárias. No Pinel, há musicoterapia, aulas de culinária, grupos de leitura, oficina de arte com papel reciclado, a Papel Pinel, e a TV Pinel.

 

Para Domingos do Nascimento, médico neurologista e primeiro-secretário do Franco Basaglia, a sociedade preconceituosa representa o maior desafio à inserção de portadores de transtornos mentais. “Nosso maior problema é a natureza cultural. Temos que reconsiderar esse estigma pesado, eles já são punidos pela doença, não devem ser pela civilização”, propõe.

 

Inicialmente, as denúncias recebidas pelo IFB se limitavam aos maus tratos nos conflitos familiares ou durante tratamentos psiquiátricos. Quando a atuação da ONG se expandiu ao acesso à justiça e à cidadania, só no ano de 2007, o programa SOS recebeu 88 novos casos. “O pedido de bolsas-auxílio e da aposentadoria demonstrou um avanço. Hoje, eles sabem que têm direitos e podem lutar por eles”, diz Domingos.

 

– A luta tem vitórias expressivas. Na questão hospitalar, o alto número de 86 mil leitos de 1990, caiu para 37 mil, aproximadamente. Dos 330 hospitais, hoje não passam de 220, e há dezoito anos não foi aberto nenhum. Nós temos muitos desafios, mas os maiores não são leis ou decretos, sim a questão cultural. E essa mudança só ocorre paulatinamente, afirma Domingos.

 

Psiquiatria Democrática

 

A postura crítica sobre o princípio de isolamento para tratar a doença mental, como o uso de internação em manicômios, foi iniciada pelo médico e psiquiatra Franco Basaglia – nome dado à ONG – na década de 60. Ele foi o precursor do movimento de reforma psiquiátrica italiana, conhecida como Psiquiatria Democrática.

 

Hospícios e asilos foram encarados como uma forma repressora, já que os internados eram excluídos do convívio familiar, do trabalho e da cidade em que viviam. Esse tratamento era muito comum, até o século XVIII, na Europa. Os hospitais não possuíam finalidade médica e eram grandes instituições filantrópicas destinadas a abrigar os indivíduos considerados indesejáveis à sociedade, como os “leprosos”, “aleijados”, “mendigos” e “loucos”.

 

 

Edição 218

 

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