Entrelinhas e estrelas
01/12/2006 17:30
Caio Barretto / Foto: Divulgação

Ao conciliar duas paixões – uma pela Física, outra pela Literatura –, o astrofísico brasileiro Marcelo Gleiser escreveu o romance A Harmonia do Mundo, no qual narra a história do astrônomo Johannes Kepler. Em entrevista ao JORNAL DA PUC, o ex-aluno da Universidade falou sobre esse e outros assuntos, como sua visão sobre a vida e a morte.

O astrofísico brasileiro Marcelo Gleiser é um explorador de universos. Formado na PUC-Rio em 1981 e professor da Dartmouth College, nos Estados Unidos, ele encontrou em seus livros um paralelo entre física e literatura, unindo dois mundos aparentemente distantes. Depois de A dança do universo e O fim da Terra e do céu, premiados com o Jabuti, Gleiser lançou seu primeiro romance, A harmonia do mundo, no qual narra a história do astrônomo Johannes Kepler que, ainda no século XVII, descobriu que a Terra gira em torno do Sol, e que a órbita dos planetas descreve um movimento elíptico. Em entrevista ao JORNAL DA PUC, Gleiser falou sobre sua experiência nos universos físico e literário.

JORNAL DA PUC: O senhor já disse que “a ciência é uma narrativa que evolui – sua função é descrever o mundo e explicar nosso papel dentro dele”. Que papel é esse?

Gleiser: “Nosso papel” aqui significa entendermos quem somos. O que a ciência nos mostra é o quanto a vida é preciosa, e o quanto é preciosa nossa capacidade de refletir sobre ela. Como seres dominantes no único lugar em que temos certeza de que a vida existe, temos o dever moral de preservá-la.

JP: Seu romance é sobre Kepler, um dos principais astrônomos da História. Einstein tem uma passagem que diz "não sabendo que era impossível, foi lá e fez". Será que essa "ignorância" é o que diferencia os gênios dos demais?

Gleiser: Marcelo Gleiser: Acho que os gênios acreditam, antes de tudo, neles mesmos. É necessário uma enorme coragem intelectual para criar o novo. No romance, conto a história de um explorador que, sozinho, vai em busca de uma fantasia. Ninguém acredita nele, acham que é louco, mas ele vai assim mesmo. Essa solidão é, às vezes, esmagadora. Talvez os chamados gênios sejam os que consigam prosseguir mais longe na busca, encontrando pontes conceituais onde outros não vêem nada.

JP: A Física pode nos ajudar a superar o medo do desconhecido, como a morte?

Gleiser: Acho que sim. O medo do desconhecido existe, principalmente, quando acreditamos no sobrenatural. O que a ciência faz é clarear as trevas, insistindo que o sobrenatural não existe. Dessa forma, o foco da existência deixa de ser a vida após a morte e passa a ser a vida que ocorre aqui e agora, a única que temos.

JP: Ao contrário da coragem de Kepler, muitos de nós vivemos presos aos medos do dia-a-dia. Como o senhor concebe a idéia do que deixamos de experimentar e descobrir por medo?

Gleiser: Como uma grande perda. Sem a coragem de arriscar não criamos o novo. É esse o grande fascínio da ciência, e um dos principais temas do livro: a devastadora sensação de perda quando passamos a vida seguindo regras e nos submetendo ao familiar, sem coragem de olhar mais além. Esse é o dilema de Michael Maestlin, o mentor de Kepler.

JP: Por que decidiu contar a história de Kepler?

Gleiser: Porque ele merece ter sua história contada. Kepler, em geral, é esquecido perante Newton ou Galileu, mas sua vida e personalidade são muito mais interessantes do que as de Newton e Galileu.

JP: Quais foram as dificuldades em escrever o romance?

Gleiser: Muitas. Quis retratar as pessoas e a época da forma mais realista possível, para que o leitor pudesse entrar na história e pensar como uma pessoa do século XVII pensava, ou ao menos entender o que ocorria então. Relatar como um gênio pensou é tarefa difícil. Foram três anos muito intensos, especialmente porque continuei a dar aulas e fazer pesquisa.

JP: Se for possível responder à questão sobre quem somos nós, o que o senhor se arrisca a dizer?

Gleiser: Somos uma espécie muito especial, dada ao sofrimento e à alegria, ao amor e ao ódio. Criamos o belo e o hediondo. Não matamos (em geral) por necessidade, mas por escolha. E aqui surge o grande dilema dos seres humanos: a consciência de que matar é imoral e as justificativas absurdas que são inventadas para que continuemos a fazê-lo. Se nossa tecnologia transforma nosso dia a dia a uma velocidade alucinante, moralmente continuamos os mesmos há milênios.

JP: Quando lembra da PUC, o que vem à mente de imediato?

Gleiser: Saudades. Adorei meus anos na PUC, aprendi muito, sofri muito também, debatendo-me com minhas limitações, tentando encontrar meu caminho dentro da ciência. Meus professores foram absolutamente fantásticos, com raríssimas exceções. Uma inspiração mesmo. Quando penso em voltar ao Brasil, penso sempre na PUC como uma opção.

JP: Por último, como a experiência com o cosmo – e o entendimento de nosso real tamanho num universo ainda desconhecido – contribui com a sua visão de mundo? Que visão é essa?

Gleiser: Uma visão de humildade e responsabilidade. Humildade por entender o quanto somos pequenos nesse cosmo gigantesco, e responsabilidade por entender o quanto a vida é preciosa e o quanto temos que preservá-la. Vejo no ser humano o potencial de uma nova era, em que exista mais respeito entre as pessoas e pelo planeta. Mesmo que os acontecimentos apontem na direção oposta, acredito que iremos mudar. Talvez demore, talvez ainda ocorram grandes conflagrações. Mas, se não mudarmos, iremos contra o instinto mais fundamental da vida: a sua preservação.

 

Jornal da PUC - Edição 180